É sinal de estreiteza quando o espírito se satisfaz: ou sinal de lassidão.

 

MONTAIGNE, M de. 1533-1592. Os ensaios: uma seleção.  Tradução R. d’Aguiar.  São Paulo: Companhia das Letras, 2010.  610p.

Sobre a experiência. Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Ensaiamos todos os meios que podem levar-nos a ele. Quando nos falta a razão, empregamos a experiência,

Per varios usus artem experientia fecit:

Exemplo monstrante viam,*

[A experiência tem por diversas práticas produzido as artes, como o exemplo mostrando o caminho,]

que é um meio muito mais fraco e menos digno. Mas a verdade é coisa tão grande que não devemos desprezar  nenhum intermediário que nos leve a ela. A razão tem tantas formas que não sabemos a qual recorrer. Não menos tem a experiência. A consequência que queremos tirar da comparação entre os acontecimentos é pouca segura, visto que eles são sempre dessemelhantes. Nessa comparação que fazemos sobre as coisas, nenhuma qualidade é tão universal quanto sua diversidade e variedade. […]  A semelhança não torna as coisas tão “unas” assim como a diferença as torna “outras”. A natureza obrigou-se a nada fazer “outro”  que não fosse dessemelhante. Por isso, não me agrada a opinião daquele** que pensava frear, pela profusão das leis, a autoridade dos juízes, dando-lhes mastigados os pedaços de que precisariam. Ele não percebia que há tanta liberdade e amplitude na interpretação das leis como em sua elaboração. E os que pensam enfraquecer nossos debates e sustá-los ao nos lembrarem as palavras expressas da Bíblia não podem ser sérios. Tanto mais que o campo que se oferece a nosso espírito para examinar o pensamento de outro não é menos vasto do que o campo em que ele expõe o seu. E seria como se houvesse menos animosidade e virulência em glosar do que em inventar.

Vemos como aquele homem se enganava. Pois temos na França mais leis do que todo o resto do mundo junto; e mais do que seria necessário para regular todos os mundos de Epicuro: Ut olim flagitiis, sic nunc legibus laboramus.*** [Como outrora sofríamos com os crimes, hoje estamos esmagados pelas leis.] E no entanto deixamos tão bem nossos juízes opinarem e decidirem que nunca houve liberdade tão poderosa e tão licenciosa. O que ganharam nossos legisladores em distinguir 100 mil categorias e fatos específicos e a eles ligar 100 mil leis? Esse número não tem a menor relação com a diversidade infinita das ações humanas. A multiplicação de nossas invenções não conseguirá igualar a diversidade dos exemplos. Somem-se a isso mais cem vezes e ainda assim não será possível que entre os acontecimentos futuros haja só um que, em todo esse grande número de milhares de acontecimentos selecionados e repertoriados, possa se juntar e emparelhar com outro tão exatamente que não reste entre eles a menor particularidade e diferença e que não requeira um julgamento específico.  Há pouca relação entre nossas ações, que estão em perpétua mutação, e as leis fixas e imóveis. As leis mais desejáveis são as mais raras, mais simples e gerais. […] Semeando as questões e retalhando-as, fazem frutificar e pulular no mundo as incertezas e as querelas, assim como a terra torna-se mais fértil à medida que é esmigalhada e profundamente revolvida. Difficultatem facit doctrina** [É a ciência que cria a dificuldade.] Duvidávamos de Ulpiano, e duvidamos também de Bartolo e Baldo.*** Seria preciso apagar os traços dessa inumerável diversidade de opiniões, e não apossar-se dela e encher a cabeça da posteridade. Não sei o que dizer disso, mas sentimos por experiência que tantas interpretações dissipam a verdade e a quebram. Aristóteles escreveu para ser compreendido; se não conseguiu, menos conseguirá um menos hábil, e um terceiro, menos que quem traduz o próprio pensamento. Abrimos nossa matéria e, macerando-a, a expandimos. De um assunto fazemos mil: e multiplicando e subdividindo caímos na infinidade dos átomos de Epicuro. Nunca dois homens julgaram da mesma maneira a mesma coisa. E é impossível ver duas opiniões exatamente iguais: não só em diversos homens mas no mesmo homem, em horas diferentes. Normalmente encontro do que duvidar naquilo que o comentário não se dignou tocar. Tropeço mais facilmente em terreno plano, como certos cavalos que conheço, que mais amiúde pisam em falso em caminho uniforme. Quem negaria que as glosas aumentam as dúvidas e a ignorância, já que não se vê nenhum livro, seja humano seja divino, em que os homens trabalharam e cujas dificuldades tenham sido vencidas por suas interpretações? O centésimo comentarista transmite àquele que o sucede um livro mais espinhoso e mais escarpado do que o primeiro que o comentou. Quando concordaremos entre nós que tal livro tem suficientes comentários e que de agora em diante não há mais nada a dizer? Isso pode ser mais bem visto nas chicanas. Confere-se força de lei a infinitos doutores, a infinitos decretos e a outras tantas interpretações. Porventura vemos progresso e avanço com respeito à serenidade? Precisamos de menos advogados e juízes do que quando essa massa de direito ainda estava em sua primeira infância? Ao contrário, obscurecemos e enterramos a inteligência. Não mais a discernimos senão à mercê de tantas cercas e barreiras. Os homens desconhecem a doença natural de seu espírito. Este apenas bisbilhota e procura; e vai incessantemente rodopiando, construindo, como nossos bichos-da-seda, e emaranhando-se em seu trabalho: nele se sufoca. Mus in pice.* [Um camundongo no piche.] Pensa notar de longe não sei que aparência de clareza e de verdade imaginárias: mas enquanto corre para lá, tantas dificuldades lhe atravessam o caminho, tantos obstáculos e novas pesquisas, que elas o extraviam e inebriam. […] É sinal de estreiteza quando o espírito se satisfaz: ou sinal de lassidão. Nenhum espírito poderoso se detém em si mesmo. Sempre se empenha em ir mais longe e vai além de suas forças. Seus impulsos vão além de seus feitos. Se não avança e não se apressa, e não se força e não se choca e se revira, só está vivo pela metade. Suas buscas não têm término nem forma. Seu alimento é o espanto, a caça, a incerteza. Como declarava Apolo, falando sempre conosco de forma ambígua, obscura e oblíqua: não nos saciando mas nos divertindo e nos ocupando. É um movimento irregular, perpétuo, sem modelo e sem objetivo. Suas invenções excitam-se, seguem-se e engendram-se uma à outra.

 

Ainsi voit l’on, en ruisseau coulant,

Sans fin l’une eau apres l’autre roulant,

Et tout de rang, d’un eternel conduict,

L’une suit l’autre, et l’une l’autre fuyt.

Par cette-cy celle-là est poussée,

Et cette-cy par l’autre est devancée:

Tousjours l’eau va dans l’eau, et tousjours est-ce

Mesme ruisseau, et toujours eau diverse.

 

[Assim se vê num riacho correndo, sem fim uma água após outra rolando, e perpetuamente num eterno conduto; uma segue a outra, e uma da outra foge. Por esta a outra é impelida, e esta pela outra é precedida: a água sempre indo na água, e sempre é o mesmo riacho, e sempre água diferente.]*

 

Há mais trabalho em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas: e mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto: não fazemos mais do que glosar uns aos outros. Tudo fervilha de comentários, mas de autores há grande escassez. O principal e mais famoso saber de nossos séculos não é saber compreender os sábios? Não é essa a finalidade comum e última de todos os estudos? Nossas opiniões enxertam-se umas nas outras. A primeira serve de caule à segunda: a segundo à terceira. Assim escalamos, degrau a degrau. E resulta que quem sobe mais alto costuma ter mais honra do que mérito. Pois só subiu um bocadinho, sobre os ombros do penúltimo. Quão frequentemente, e talvez tolamente, estendi meu livro até que ele falasse de si? Tolamente, quanto mais não fosse por esta razão: eu devia me lembrar do que digo dos outros que fazem o mesmo; de que essas olhadelas tão frequentes para suas obras provam que o coração estremece de amor por elas; e de que mesmo as asperezas e o menosprezo com que as castigam são apenas mimos e repreensões de uma solicitude maternal, seguindo Aristóteles, para quem tanto prezar como desprezar costumam nascer do mesmo ar de arrogância. Pois não sei se todos aceitarão minha desculpa de que devo ter nisso mais liberdade que os outros porque, justamente, escrevo sobre mim, e sobre meus escritos e sobre minhas outras ações, já que meu tema se revira sobre si mesmo. Vi na Alemanha que Lutero deixou tantas, e mesmo mais discórdias e desacordos sobre suas opiniões do que ele mesmo levantou a respeito das Sagradas Escrituras. Nossa contestação é verbal. Pergunto o que são  natureza, prazer, círculo, fideicomisso. A questão é sobre palavras e é paga na mesma moeda. Uma pedra é um corpo: mas se pressionássemos: “E corpo, o que é?”,  ” Uma substância”, “E substância, o que é?”, e assim por diante, encurralaríamos o interlocutor até o fim de seu dicionário. Troca-se uma palavra por outra e quase sempre por uma mais desconhecida ainda. Sei melhor o que é “homem” do que sei o que é “animal”, ou “mortal”, ou “racional”. Para esclarecer uma dúvida, dão-me três: é a cabeça da Hidra. Sócrates perguntou a Mênon o que era a virtude: “Há”, disse Mênon, “virtude de homem e de mulher, de magistrado e de cidadão particular, de criança e de velho”. “Ah, isso é muito bom, exclamou Sócrates, “estávamos em busca de uma virtude e nos trazes um enxame.” Fazemos  uma pergunta e nos devolvem uma colmeia. […] Engenhosa mescla da natureza. Se nossas faces não fossem semelhantes, não se saberia discernir o homem do animal: se não fossem dessemelhantes, não se saberia discernir um homem de outro. Todas as coisas se ligam por certa semelhança. Todo exemplo é falho. E a relação que se estabelece a partir da experiência é sempre falha e imperfeita. […]

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*Manílio, I, LIX.

*Os Perroset eram fabricantes de cartas estabelecidos em Avignon desde o século XV. Na época, o verso das cartas era branco e sem nenhuma decoração.

**Triboniano, jurista e ministro do imperador bizantino Justiniano, cujo Código previa tantos casos que reduzia o papel dos juízes a apenas aplicá-lo.

***Tácito, Anais, III, xxv, I.

**Quintiliano, Instituição oratória, X, iii, 16.

****Ulpiano (170-228), famoso jurisconsulto romano. Bartolo de Sassoferrato (1313-1357) e seu aluno Pietro Baldo (1327-1400) foram influentes glosadores de textos jurídicos no século XIV.

*Velho adágio publicado na edição francesa dos Adágios, de Erasmo, 1571.

*La Boétie, “Á Marguerite de Carle sur la traduction des Plantes de Bradamant”, 109-6.

 

 

 

É sinal de estreiteza quando o espírito se satisfaz: ou sinal de lassidão.

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