Um autor não oculto

MORIN, E., 1921-. Introdução ao pensamento complexo. Tradução Eliane Lisboa.  5. ed.  Porto Alegre: Sulina, 2015.  120p.

Devo responder às questões a meu respeito? Escutem, não vou responder sobre as coisas mais subjetivas, ainda que minha subjetividade tenha vontade de lhes responder. Mas, ainda assim, talvez deva exprimir a consciência de existir pessoalmente em minha obra. Sou um autor não oculto. Quero dizer com isso que me diferencio dos que se dissimulam atrás da aparente objetividade de suas ideias, como se a verdade anônima falasse por sua pena.

Ser autor é assumir suas ideias no melhor e no pior. Sou um autor que, além disso, se autodesigna. Preciso dizer que essa exibição comporta também a humildade. Entrego minha dimensão subjetiva, coloco-a na mesa, dando ao leitor a possibilidade de detectar e de controlar minha subjetividade. Tento ser denotativo ao dar definições e creio definir todos os conceitos que prenuncio. Mas, uma vez colocada a definição, deixo-me levar pela linguagem, com tudo o que se o faz. Além disso, sabe-se que a história das ciências é feita de migração de conceitos, isto é, literalmente de metáforas.

O conceito de trabalho, de origem antropossociológica, tornou-se um conceito físico. O conceito científico de informação, provindo do telefone, tornou-se um conceito físico, depois migrou à biologia, onde os genes se tornaram portadores de informação.

 

A migração dos conceitos

Os conceitos viajam e é melhor que viajem sabendo que viajam. É melhor que não viajem clandestinamente. É bom também que eles viajem sem serem percebidos pelos aduaneiros!  De fato, a circulação clandestina dos conceitos ao menos permitiu às disciplinas respirar, se desobstruir. A ciência estaria totalmente atravancada se os conceitos não migrassem clandestinamente. Mendelbrot dizia que as grandes descobertas são frutos de erros na transferência dos conceitos de um campo a outro, realizadas, acrescentava ele, pelo pesquisador de talento. É preciso talento para que o erro se torne fecundo. Isso mostra também a relatividade do papel do erro e da verdade.

Vocês fizeram alusão a minha tendência aos jogos de palavras como “os limites da consciência e a consciência dos limites”. Hegel, Marx, Heidegger dedicaram-se aos jogos de palavras. Isso me diverte. Muitos amigos, ao lerem meus manuscritos, me disseram:”Retire estes trocadilhos, os cientistas não vão te levar a sério!”. Fui tentado a seguir o conselho de meus amigos. Depois disse: não, eu estaria me lesando. Quis me dar um pequeno prazer subjetivo complementar. É grave?  Creio que não é somente o autor, mas também as palavras que brincam com elas mesmas. Como dizia o poeta, as palavras fazem amor. Na fórmula citada sobre os limites da consciência, o que é interessante é o balanço e o retorno: você inverte, você permuta os termos e o predicado vira sujeito, o sujeito predicado. Por aí mesmo, você opera eventualmente um movimento circular e o pensamento recomeça, de uma maneira recursiva. É o efeito que retroage sobre a causa e o produto que se volta sobre o produtor. Essa própria ideia de circularidade recursiva  pode ser dita poeticamente. Gérard de Nerval disse: “A décima terceira retorna, é sempre a primeira”. Vocês não dirão “senhor, por que o senhor fala desse modo? Pode-se simplesmente dizer que quando forem treze horas é uma hora e pronto”. Mas vocês perdem o círculo. Ou, como diz Elliot: “O fim está no ponto de partida”. Compreende-se muito bem o que ele quer dizer. Deve-se compreender que as metáforas fazem parte da convivialidade da linguagem e da convivialidade das ideias.

Um autor não oculto