RILKE, R. m., 1875-1926. Elegias de Duíno. Tradução D. da Silva. Porto Alegre: Globo, 1972. 96p.
Segunda elegia
Todo Anjo é terrível. No entanto, ai de mim, eu vos invoco,
pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois.
Tempos remotos de Tobias, em que o mais radiante dentre vós
aparecia no limiar da casa humilde, sem intimidar,
para a viagem levemente disfarçado; (jovem que outro jovem,
curioso, contemplava). Adiantasse agora o Arcanjo,
ameaça de trás das estrêlas, um passo apenas
para o nosso lado: no grande sobressalto
destruir-nos-ia o próprio coração. Quem sois?
Precoces perfeições, vós, privilegiados,
perfil dos altos cumes, cimos alvorecentes
de tôda criação – pólen da divindade em flor,
articulações de lu, corredores, escadas tronos,
recintos da essência, escudos de alegria, tumultos
de êxtases tempestuosos, e, sùbitamente
solitários, espelhos cuja beleza reflui
restituída à face que se contempla.
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se –
exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
“circulas no meu sangue, êste quarto, a primavera,
estão cheios de ti”. Inùtilmente procuram nos reter.
Evolamos. E aquêles que são belos, oh, quem os
deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
e se dissipa. Tal o orvalho da manhã
e o calor do alimento, o que é nosso
flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
nêle nos perdemos? E os Anjos,
retomarão apenas o que dêles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vêzes
em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Êles porém nada percebem,
no turbilhão da volta a si mesmos. (Como o saberiam?)
Se o soubessem, os Amantes diriam
estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece
que tudo nos oculta. Olhai, as árvores são; as casas
que habitamos, resistem. Sòmente nós passamos,
permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira
para que silenciemos: o pudor, ou
quem sabe que indizível esperança.
Amantes, que vos bastais, qual nosso segrêdo?
Há contato entre vós. Teríeis provas?
Às vêzes minhas mãos se reconhecem ou
meu rosto gasto nelas tenta se abrigar.
Isto me dá uma certa consciência de mim mesmo.
Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?
Mas vós, acrescidos no êxtase um do outro
até que exausto, um suplique: basta! – vós,
cujas mãos descobrem a riqueza dos anos de vinho
e que vos dissolveis para que o outro domine,
pergunto-vos: qual nosso segrêdo? Eu sei,
bem-aventurado é vosso contato, pois
as carícias sutilmente protegem, retêm
a duração pura; e o amplexo, não vos promete quase
a eternidade? Quando resistis ao sobressalto
dos primeiros olhares, à ansiosa espera
à janela, ou quando ultrapassais
o primeiro passeo, juntos,
num jardim: amantes, sois vós ainda?
Quando um no outro pousais os vossos
lábios, como taças, oh, como se evade
então, estranhamente, o embriagado.
Admirastes nas estelas gregas a prudência
do gesto humano? O amor e o adeus sôbre as espáduas
pousavam de leve, como se de outra matéria fôssem
feitos, que nós desconhecemos. Lembrai-vos das mãos que,
sem pêso, se apoiavam, apesar dos corpos vigorosos. Senhores
de si mesmos, êles sabiam: aqui estamos,
em nosso palpável domínio; mais poderosamente
os deuses podem nos premir. Isso é assunto
dos deuses. – Ah, encontrássemos também nós
uma estreita faixa de terra fértil, puramente
humana, entre a torrente e a rocha!
Pois nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora
e é impossível saciá-lo em figuras apaziguantes,
ou em corpos divinos que, imensos, o moderam.