Estará o mundo impregnado de nós, pois que nele nos perdemos?

RILKE, R. m., 1875-1926. Elegias de Duíno. Tradução D. da Silva. Porto Alegre: Globo, 1972. 96p.

Segunda elegia

Todo Anjo é terrível. No entanto, ai de mim, eu vos invoco,

pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois.

Tempos remotos de Tobias, em que o mais radiante dentre vós

aparecia no limiar da casa humilde, sem intimidar,

para a viagem levemente disfarçado; (jovem que outro jovem,

curioso, contemplava). Adiantasse agora o Arcanjo,

ameaça de trás das estrêlas, um passo apenas

para o nosso lado: no grande sobressalto

destruir-nos-ia o próprio coração. Quem sois?

Precoces perfeições, vós, privilegiados,

perfil dos altos cumes, cimos alvorecentes

de tôda criação – pólen da divindade em flor,

articulações de lu, corredores, escadas tronos,

recintos da essência, escudos de alegria, tumultos

de êxtases tempestuosos, e, sùbitamente

solitários, espelhos cuja beleza reflui

restituída à face que se contempla.

O sentir em nós, ai, é o dissipar-se –

exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência

nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:

“circulas no meu sangue, êste quarto, a primavera,

estão cheios de ti”. Inùtilmente procuram nos reter.

Evolamos. E aquêles que são belos, oh, quem os

deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto

e se dissipa. Tal o orvalho da manhã

e o calor do alimento, o que é nosso

flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?

E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova

do coração? Ai de nós, assim somos.

Estará o mundo impregnado de nós, pois que

nêle nos perdemos? E os Anjos,

retomarão apenas o que dêles emanou?

Talvez um pouco de humano se encontre às vêzes

em seus traços, como o vago no rosto das mulheres

grávidas? Êles porém nada percebem,

no turbilhão da volta a si mesmos. (Como o saberiam?)

Se o soubessem, os Amantes diriam

estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece

que tudo nos oculta. Olhai, as árvores são; as casas

que habitamos, resistem. Sòmente nós passamos,

permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira

para que silenciemos: o pudor, ou

quem sabe que indizível esperança.

Amantes, que vos bastais, qual nosso segrêdo?

Há contato entre vós. Teríeis provas?

Às vêzes minhas mãos se reconhecem ou

meu rosto gasto nelas tenta se abrigar.

Isto me dá uma certa consciência de mim mesmo.

Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?

Mas vós, acrescidos no êxtase um do outro

até que exausto, um suplique: basta! – vós,

cujas mãos descobrem a riqueza dos anos de vinho

e que vos dissolveis para que o outro domine,

pergunto-vos: qual nosso segrêdo? Eu sei,

bem-aventurado é vosso contato, pois

as carícias sutilmente protegem, retêm

a duração pura; e o amplexo, não vos promete quase

a eternidade? Quando resistis ao sobressalto

dos primeiros olhares, à ansiosa espera

à janela, ou quando ultrapassais

o primeiro passeo, juntos,

num jardim: amantes, sois vós ainda?

Quando um no outro pousais os vossos

lábios, como taças, oh, como se evade

então, estranhamente, o embriagado.

Admirastes nas estelas gregas a prudência

do gesto humano? O amor e o adeus sôbre as espáduas

pousavam de leve, como se de outra matéria fôssem

feitos, que nós desconhecemos. Lembrai-vos das mãos que,

sem pêso, se apoiavam, apesar dos corpos vigorosos. Senhores

de si mesmos, êles sabiam: aqui estamos,

em nosso palpável domínio; mais poderosamente

os deuses podem nos premir. Isso é assunto

dos deuses. – Ah, encontrássemos também nós

uma estreita faixa de terra fértil, puramente

humana, entre a torrente e a rocha!

Pois nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora

e é impossível saciá-lo em figuras apaziguantes,

ou em corpos divinos que, imensos, o moderam.

Estará o mundo impregnado de nós, pois que nele nos perdemos?

A tristeza é também uma onda

RILKE, R. M., Cartas a um jovem poeta. Tradução F. Jorge. Rio de Janeiro: HEMUS, 1967.  71p.

Borgeby Gard, Fladie, Suécia                                                                                                  12 de agôsto de 1904

Venho outra vez palestrar consigo, meu prezado senhor Kappus, se bem que pouco tenha a dizer-lhe que possa ajudá-lo ou ser-lhe útil. Diz-me que múltiplas e enormes tristezas cruzaram o seu caminho e que a passagem dessas tristezas bastou para o abalar. Peço-lhe que se interrogue e que veja se essas enormes tristezas não atravessaram as regiões mais profundas de si mesmo, se não modificaram muitas coisas em si, se nenhum ponto do seu ser se transformou ao contacto. Apenas são cruéis e perigosas as tristezas que passeamos na multidão para que esta lhes dê remédio e que se parecem a essas moléstia, negligentemente tratadas, que somem num momento para retornar em seguida, mais perigosas do que nunca. Estas acumulam-se em nós e também são vida, mas vida que não foi vivida, vida desprezada e como que abandonada, mas que nem por isso deixas às vezes de ser fatal. Se a nossa vista alcançasse para além dos limites do conhecimento, e mesmo para além do halo das nossas intuições, talvez acolhêssemos as nossas melancolias com mais confiança ainda do que as nossas alegrias. As tristezas são auroras novas em que o desconhecido nos visita. A alma, assustada e temerosa, cala-se, tudo se afasta, faz-se uma grande tranqüilidade e o incognoscível surge em silêncio.

Quase todas as nossas tristezas, são acredito, estados de tensão que experimentamos como que tolhidos, assustados por já não nos sentirmos viver. Estamos sós com esse desconhecido que penetrou em nós, privados de tudo aquilo a que estávamos habituados a confiar-nos. Pelejamos como se lutássemos com uma corrente de que tivéssemos de suportar as ondas. A tristeza é também uma onda. O desconhecido uniu-se a nós, penetrou no âmago do nosso coração, e já nem sequer está no nosso coração, pois se mesclou com o nosso sangue e assim ignoramos o que se passou. Seria fácil fazerem-nos crer que não se passou nada. E, todavia, eis-nos transformados como uma casa pela presença de um hóspede. Não podemos dizer quem chegou, não o saberemos talvez nunca, mas muitos sinais nos indicam que foi o futuro que, deste modo, entrou em nós para se transformar na nossa substância, muito antes de tomar forma. Eis porque a solidão e o recolhimento são tão importantes quando estamos melancólicos. Êsse instante aparentemente ôco, esse instante de tensão que o futuro nos penetra, está infinitamente mais perto da existência do que aquêle outro instante em que se nos impõe do exterior, em pleno tumulto e como que por acaso. Quanto mais silenciosos, pacientes e recolhidos formos nas nossas melancolias, de forma mais eficaz o desconhecido penetrará em nós. O desconhecido é o nosso bem. Metamorfoseia-se na carne do nosso destino, ligando-nos a este quando foge de nós para se realizar, isto é, para se projetar no cosmo. E é preciso que assim seja. É preciso – e é nisto que consiste a nossa evolução – que jamais encontremos nada que não nos pertença há já muito tempo. […]
Como poderia a nossa condição não ser difícil?
E para regressarmos à solidão, torna-se-nos cada vez mais patente que a solidão não é uma coisa que possamos aceitar ou recusar ao nosso talante. Podemos, é indubitável, enganar-nos a nós próprios e fazer de conta que não é assim. Porém, nada mais. Como seria preferível entender que somos sempre solidão e partir desta verdade! Sem dúvida, esta certeza provocar-nos-ia vertigens porque todos os horizontes familiares sumiriam, tudo nos pareceria longínquo e o longínquo recuaria até o infinito. Só um homem que, bruscamente e sem ser avisado, fosse transportado do seu quarto para o alto de uma montanha, sentiria qualquer coisa de parecido: uma insegurança sem par, um abalo tal, oriundo de uma força desconhecida, que seria quase capaz de o destruir. […] Devemos aceitar a nossa vida tão completamente quanto possível. Tudo, mesmo o inconcebível, deve tornar-se possível. No fundo, a única valentia que nos é pedida é a de fazermos face ao singular, ao maravilhoso, ao extraordinário que se nos deparar. Custou bem caro à vida que os homens, neste ponto, tivessem sido débeis.
Essa vida que chamam imaginária, esse cosmo que pretendem sobrenatural, a morte, todas estas coisas nos são, no fundo, consubstanciais, mas foram expelidas da vida por uma defesa diária, a tal ponto que os sentidos que teriam podido apreendê-las se atrofiaram. O medo do sobrenatural não empobreceu somente a existência do indivíduo, mas ainda as relações de homem para homem, subtraindo-as ao rio das possibilidades infinitas para as colocar a salvo, em qualquer ponto seguro das margens. Não é só devido à indolência que estas relações são indizìvelmente monótonas e se reproduzem sem alternativas: é também porque o homem teme as novidades que não sente à altura de enfrentar e cujo epílogo é imprevisível. Só aquêle que espera tudo, que não exclui nada, nem mesmo o mistério viverá, como fazendo parte da vida, as relações de homem para homem e, indo ao mesmo tempo até à fronteira da sua própria vida. Se concebermos a vida do indivíduo como um quarto maior ou menor, torna-se evidente que quase todos aprendem apenas a conhecer um canto dêsse quarto, aquêle local em frente da janela, aquêle raio em que se movem e onde encontram uma relativa segurança. Quanto mais humana não é, porém, aquela insegurança, cheia de perigos, que leva os prisioneiros, nas histórias de Poe, a explorar com os dedos as suas horríveis masmorras, a tudo conhecer dos terrores indescritíveis que resultam dessa curiosidade! Mas nós não somos prisioneiros. Nenhum alçapão, nenhuma armadilha nos ameaça. Não temos nada a recear. Fomos colocados na vida por ser a vida o elemento que mais nos convém. Uma adaptação milenária faz com que nos pareçamos com o cosmo, a tal ponto que, se permanecêssemos calmos, mal nos distinguiríamos, por um feliz mimetismo, do que nos cerca. Não temos nenhuma razão de desconfiar do universo, porque este não nos é contrário. Se existem terrores, esses terrores são os nossos; se há abismos, são os nossos abismos; se há perigos, devemos esforçar-nos por amá-los. Se construirmos a nossa existência sobre o lema de que devemos sempre dar preferência ao mais difícil, tudo o que ainda hoje nos parece singular se tornará familiar e fiel. Como olvidar esses mitos antigos que se encontram no início da história de todos os povos, os mitos dos dragões que, no momento supremo, se transformam em princesas? Todos os dragões da nossa existência são talvez princesas que esperam ver-nos, um dia, belos e audazes. Todas as coisas assustadoras não são mais, talvez, do que coisas indefesas que esperam que as socorramos [..]
Não se observe muito. Evite tirar conclusões sumárias do que se passa em si. Abandone-se e não raciocine. Caso contrário, seria levado a censurar o seu próprio passado (sob o ângulo moral, entende-se…), porque o passado é em parte responsável do que hoje lhe acontece. […]
Se me permite, dir-lhe-ei ainda uma coisa: não acredite que sob estas palavras simples e tranquilas, que às vezes o acalmam, aquêle que se esforça por reconforta-lo viva sem empecilhos. A sua existência não está isenta de penas e tristezas que o deixam muito aquém delas. Mas, se assim não fosse, nunca teria podido achar estas palavras o seu

Rainer Maria Rilke

A tristeza é também uma onda

Estamos aqui talvez para dizer…

RILKE, R. M., 1875-1926. Elegias de Duíno. Tradução Dora F. Da Silva. Porto Alegre: Globo, 1972.  96p.

Nona elegia

Por que, sendo possível o prazo da existência

levar como o loureiro, de um verde mais sombrio que todos

os outros verdes, com leves ondulações no contôrno

das fôlhas (como um sorriso do vento) – por que

então, escravos do humano, anelar pelo destino

fugindo ao destino?…

Oh, não porque a felicidade exista,

essa prematura dádiva de uma perda iminente.

Não por curiosidade ou exercício do coração

que lá poderia estar, no loureiro…

Mas porque estar-aqui é excessivo e tôdas as coisas

parecem precisar de nós, essas efêmeras que estranhamente

nos solicitam. A nós, os mais efêmeros. Uma vez

cada uma, sòmente uma vez.  Uma vez e nunca mais.

E nós também, uma vez, jamais outra. Porém êste

ter sido uma vez, ainda que apenas uma vez,

ter sido terrestre, não parece revocável.

 

E assim, urgidos, queremos cumpri-lo,

contê-lo em nossas simples mãos,

no transbordante olhar, no coração emudecido.

Tentamos nêle nos transformar. A quem dá-lo?

Melhor tudo guardar para sempre… Na outra relação,

ai de nós, o que poderíamos transpor? Não o contemplar,

aqui vagarosamente apreendido, não o aqui consumado.

mas a angústia e acima de tudo o mais árduo,

a longa experiência do amor – o puro

indizível. Mais tarde, porém, o que dizer

entre as estrêlas, tão mais, tão mais indizíveis?

Traga pois o viandante da encosta do monte para o vale,

não apenas um punhado de terra do indizível,

mas a palavra colhida pura, a genciana amarela

e azul. Estamos aqui talvez para dizer: casa,

ponte, árvore, porta, cântaro, fonte, janela –

e ainda: coluna, tôrre… Mas para dizer, compreenda,

para dizer as coisas como elas mesmas jamais

pensaram ser ìntimamente. Não é o mais secreto ardil

da terra silenciosa, ao impedir os amantes, fazer

com que tudo se rejubile no seu sentimento?

Umbral: o que significa para dois amantes

que êles também desgastem o velho umbral

da porta, êles também, depois de tantos outros,

e antes dos que virão ainda… inevitàvelmente?

Eis aqui o tempo do dizível, eis aqui sua pátria.

Fala e proclama. Cada vez mais

dissipam-se as coisas que ao nosso lado viviam

e em seu lugar se instala um Fazer sem Imagem.

Fazer, que tenta destruir a crosta limitante,

quando a ação se desenvolve e toma novos contornos.

 

Entre malhos subsiste

nosso coração, como a língua

entre os dentes, e que, no entanto,

permanece a exaltadora.

 

Canta ao Anjo o louvor do mundo, não o indizível; diante

dêle não podes vangloriar-te da tua esplêndida intuição;

no universo em que êle, o mais intuitivo, intui, não és mais

do que um noviço. Mostra-lhe o simples, o que através das

gerações configurado vive como o nosso no olhar e ao alcance

da mão. Dize-lhe as coisas. Nêle acordarás o que em ti

[despertou

o cordoeiro de Roma e o ceramista do Nilo. Mostra-lhe como

[pode

ser feliz uma coisa, inocente e nossa; como até a

[lamentosa dor

se resolve puramente em forma e serve, humilde

como uma coisa ou morre numa coisa – e como se evade

o violino para a bem-aventurança. E estas coisas

que vivem o fugaz, compreendem que teces o seu louvor;

efêmeras, adivinham salvadores em nós, os mais efêmeros.

Que em nossos corações invisíveis se cumpra a sua

metamorfose – infinitamente – quem quer que sejamos!

Terra, não é êste o teu desejo: renascer invisível

em nós? – Não é teu sonho tornar-te

invisível algum dia? – Terra!  Invisível

Não é a metamorfose tua desesperada missão?

Terra, ó minha amada, assim o quero! Crê-me,

não preciso mais que as tuas primaveras me atraíam;

uma, ai, uma só já é excessiva para o meu sangue.

De obscuras distâncias consagrei-me todo a ti…

sempre tiveste razão e a tua inspiração sagrada

é a morte íntima.

Vivo. De quê? Infância ou futuro

não decrescem… Uma caudalosa existência

transborda em meu coração.

 

 

.

 

 

 

 

Estamos aqui talvez para dizer…

Morreria, se não me fosse permitido escrever?

RILKE, R. M., 1875-1926. Cartas a um jovem poeta. Tradução Fernando Jorge.  Rio de Janeiro: HEMUS, 1967.  71p.

Paris, 17 de fevereiro de 1903

Meu estimado senhor:

Recebi sua carta há poucos dias. Quero lhe agradecer a grande e amável confiança que esta representa. Mas pouco mais posso fazer. Não examinarei os seus versos, pois sempre fui alheio a qualquer intenção crítica. Para penetrar uma obra de arte, nada pior do que as palavras da crítica, que sòmente levam a mal-entendidos mais ou menos felizes. Nem tudo pode saber e dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou. E nada mais difícil de definir do que as obras de arte, – sêres misteriosos cuja vida imperecível acompanha nossa vida efêmera.

Após isto, apenas acrescento que os seus versos não revelam uma maneira própria. Possuem, é certo, sinais de personalidade, porém ainda tímidos e ocultos. Senti-o no seu último poema. A Minha Alma. Neste, qualquer coisa peculiar procura achar solução e forma. E em tôda a formosa poesia A Leopardi se sente uma espécie de afinidade com êste príncipe, êste solitário. Entretanto, as suas poesias não têm existência própria, nem mesmo a última, nem mesmo a que é dedicada a Leopardi. Na sua missiva encontrei a explicação de certas insuficiências que, ao lê-lo, já havia percebido, mas a que não me foi possível dar nome. Indaga-me se os seus versos são bons. Pergunta a mim, depois de ter perguntado a várias pessoas. Manda-as para as revistas, compara-os a outros versos e alarma-se quando certos jornais repelem os seus ensaios poéticos. Doravante, (já que me permite aconselhá-lo) peço-lhe que renuncie a tudo isto. O seu olhar está voltado para o exterior. Eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode dar-lhe conselhos nem ajudá-lo – ninguém! Só existe um caminho: penetre em si mesmo e procure a necessidade que o faz escrever. Observe se esta necessidade tem raízes nas profundezas do seu coração. Confesse à sua alma: Morreria, se não me fôsse permitido escrever? Isto, principalmente. Na hora mais tranqüila da noite, faça a si a pergunta: Sou de fato obrigado a escrever? – Examine-se a fundo, até achar a mais profunda resposta. Se ele fôr afirmativa, se puder fazer face a tão grave interrogação com um forte e simples Sou, então construa a sua vida em harmonia com esta necessidade. A sua existência, mesmo na hora mais indiferente e vazia, deve tornar-se sinal e testemunho de tal impulso. Aproxime-se então da natureza. Depois procure como se fôsse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite, de início, os temas demasiado comuns: são os mais difíceis. Nos assuntos em que tradições seguras, às vêzes brilhantes, se mostram em grande número, o poeta só pode realizar obra pessoal na plena maturidade da sua fôrça. Fuja dos grandes assuntos e aproveite aquêles que o dia-a-dia lhe oferece.  Fale das suas tristezas e dos seus desejos, dos pensamentos que o tocam, da sua fé na beleza. Diga tudo com sinceridade calma e humilde. Utilize, para se exprimir, os objetos que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, as suas lembranças. Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há lugares mesquinhos e indiferentes. Mesmo num cárcere cujas paredes abafassem todos os ruídos do universo, não lhe ficaria sempre a sua infância, essa preciosa, essa esplêndida riqueza, êsse tesouro de recordações? Volte, para esta direção, o seu espírito. Procure fazer regressar à superfície as impressões submersas dêsse longínquo passado. A sua personalidade fortificar-se-á, a sua solidão povoar-se-á, tornando-se, nas horas incertas do dia, uma espécie de moradia fechada aos sons exteriores.  E se lhe vierem versos dêste regresso a si próprio, dêste mergulho no seu cosmo, não pensará em indagar se são bons ou não, não tentará conseguir que periódicos se interessem pelos seus trabalhos, porque desfrutará dêles como de uma posse natural, como de uma de suas formas de vida e expressão. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade: e a natureza da sua origem que a julga. Por isto, meu prezado senhor, apenas me é possível dar-lhe êste conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades de onde jorra a sua vida. Só desta maneira encontrará resposta à pergunta: Devo criar? De tal resposta recolha o som sem desviar o sentido. Talvez chegue à conclusão de que a Arte o chama. Neste caso, aceite o seu destino e siga-o, com o seu pêso e a sua majestade, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir de fora. O criador deve ser um mundo para si próprio, tudo encontrar em si e nesse pedaço de natureza com que se identificou. Pode suceder que, depois desta decida em si mesmo, ao âmago solitário de si mesmo, tenha de renunciar a ser poeta. (Basta, no meu entender, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo).  Mesmo assim, a introspecção que lhe peço não terá sido inútil. A sua vida, desde aí, encontrará caminhos próprios. Que êstes sejam bons, ricos e largos, é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que poderei acrescentar? Acredito ter abordado o essencial. No fundo, apenas fiz questão de aconselhá-lo a progredir segundo a sua lei, de modo grave e sereno. Não lhe seria possível perturbar mais violentamente a sua evolução do que dirigindo o seu olhar para fora, do que esperando de fora as respostas que apenas o seu sentimento mais secreto, na hora mais silenciosa, poderá talvez proporcionar-lhe.

Gostei de encontrar, na sua carta, o nome do professor Horacek. Dediquei, a êste sábio, uma grande estima e uma gratidão que já duram há anos. Quer transmitir-lhe isto da minha parte? É bondade dêle, que muito aprecio, lembrar-se ainda de mim.

Restituo-lhe os versos que me confiou tão amigàvelmente e mais uma vez lhe agradeço a cordialidade e a amplitude da sua confiança.

Procurei, nesta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, na minha qualidade de estranho.

Com tôda a dedicação e tôda a simpatia.

 Rainer Maria Rilke

Morreria, se não me fosse permitido escrever?

E mais alto, as estrêlas. Recém-nascidas. Estrêlas do país da dor.

RILKE, R. M., 1875-1926. Elegias de Duíno. Tradução Dora F. da Silva.  Pôrto Alegre: Globo, 1972. 96p.

Que um dia, ao emergir da terrível intuição, ascenda

meu canto de júbilo e glória até os Anjos aprovadores!

Que nenhum claro golpe dos malhos do coração

desentoe sôbre cordas frouxas, vacilantes ou

desgarradas! Que meu rosto se ilumine sob o pranto!

Que a obscura lágrima floresça! Oh, como então vos amaria,

noites de aflição! Por que me ajoelhei mais contrito,

inconsoláveis irmãs, para vos acolher,

para me perder em vossos cabelos desfeitos

com mais abandono? Nós, dissipadores da dor.

Como buscamos longe, na triste duração, seu fim

desejado! Ela é, porém, nossa folhagem de inverno,

nossa pervinca sombria, uma das estações

do ano secreto – não sòmente estação – mas

espaço, residência, campo, solo, morada.

 

Estranhas ruas da Cidade-Aflição, onde,

no aparente silêncio feito de estrépito

irrompe violento, gerado no molde do vazio,

o ruído do ouro, o monumento trepidante.

Oh, como, sem deixar vestígios, um Anjo andaria

em seu mercado de consôlo que a igreja limita,

a igreja comprada feita: limpa, fechada e tristonha

como o correio aos domingos… Fora, está sempre

a feira de encapelado contôrno. Balanças de liberdade!

Mergulhadores e charlatães do zêlo! E o simbólico

tiro à felicidade ataviada: os berloques

se agitam e há ruídos de estanho quando um atirador

mais destro alcança a meta. Ao capricho dos acasos

êle prossegue, vacilante, pois há uma tenda apregoando

ruidosa para cada anseio.  Especial para adultos: veja-se

como o dinheiro se reproduz, anatômicamente,

não como simples diversão. O órgão genital do dinheiro,

tudo acessível, à vista!  É instrutivo e favorece

a procriação…………..

……………… Oh, e um pouco além, atrás do último

tabique, ostentando os cartazes dos Libertos da Morte

 –  cerveja amarga que aos bebedores tão doce parece

quando a bebem mastigando frescas distrações… –

atrás do tabique, logo atrás está o real.

As crianças brincam, os amantes se ignoram, graves,

sôbre a erva rala e os cães seguem a natureza.

Para mais longe sente-se o jovem atraído; ama talvez uma

[jovem

Lamentação… Seguindo-a, caminha através dos campos.

[Ela diz:

longe, vivemos muito longe…

Onde?              E o jovem continua.

Sua atitude o fascina: os ombros, o colo – talvez é ela

de nobre origem.   Mas a abandona, se aparta e

de longe acena… Para quê?   Ela é uma Lamentação.

Sòmente os que morreram jovens, os iniciados

na indiferença alheia ao tempo do desacostumar-se,

a seguem por amor.  Às jovens ela aguarda

e dá sua amizade.   Mostra-lhes com doçura seus

adornos: pérolas de dor e os tênues

véus de assentimento.  –  Como os jovens,

caminha em silêncio.

Longe, onde vivem, uma velha Lamentação

fala ao jovem curioso: – Nós fomos, diz ela,

uma grande raça, outrora. Nossos pais exploravam

as minas, além, nas grandes montanhas; entre os homens

encontram-se às vêzes fragmentos polidos da dor original

ou, expulsas de um velho vulcão, escórias de cólera

petrificada. Sim, isto veio de lá.  Outrora fomos ricos.

E ela o conduz através da ampla paisagem das Lamentações,

mostra-lhe as colunas do templo e as ruínas

de antiqüíssimos castelos: lá viviam os sábios príncipes

que dominavam outrora. Mostra-lhe árvores esguias

de lágrimas e campos de nostalgia em flor

(os que vivem não conhecem senão a sua doce folhagem);

mostra-lhe, pascendo, o rebanho da tristeza – às vêzes

um pássaro assustado, cruzando o espaço, desenha

a imagem de seu grito solitário.  –

Ao crepúsculo ela o conduz ao sepulcro dos antepassados

das Lamentações: as Sibilas e os Profetas.

A noite se aproxima e então caminham mais tranqüilos;

já se levanta, banhada pela lua, a pedra funerária

que vela sôbre o mundo, irmã da sublime Esfinge

do Nilo  – : face

da câmara secreta.

E êles contemplam, atônitos, a cabeça real

que, para sempre calada, pôs a face dos homens

na balança das estrêlas.

O olhar do jovem, que a morte recente

enche de vertigem, não a poder conter.  Mas

ela, que espreita, afugenta o môcho

de trás do pschent.  E aquêle,

roçando num leve contato

a curva madura da Face, desenha

de leve no ouvido do morto, sôbre uma dupla

fôlha aberta, o contôrno inefável.

E mais alto as estrêlas. Recém-nascidas.  Estrêlas

do país da Dor. A Lamentação revela seus nomes:

Aqui, veja: o Cavaleiro, o Bordão, e a êsse denso grupo

de estrêlas chamamos Coroa de Frutos. Além,

perto do pólo: Berço, Caminho, O Livro Ardente, Boneca,

Janela.  E no céu do sul, puro como a palma de uma sagrada

mão, o fulgor límpido das Madres…

Mas o morto deve prosseguir e, em silêncio, a Lamentação

mais velha o conduz à garganta do vale

onde, ao luar, cintila

a fonte da alegria. Com veneração

ela a indica: Entre os homens,

eis a torrente portadora.

Ao pé da montanha êles se detêm.

E ela o abraça, chorando.

Solitário, êle ascende à montanha da dor original.

E nem uma só vez seu passo ressoa no destino insonoro.

Mas se os infinitamente mortos despertassem um símbolo,

em nós, olhai, mostrariam talvez os engastes pendentes

das aveleiras vazias, ou a chuva que cai

sôbre o reino obscuro da terra em primavera.

E nós que imaginamos a ventura em ascensão,

sentiríamos uma ternura imensa,

quase perturbadora,

quando uma coisa feliz cai.

 

E mais alto, as estrêlas. Recém-nascidas. Estrêlas do país da dor.

Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário de um adeus

RILKE, R. M., 1875-1926. Elegias de Duino. Tradução Dora F. da Silva.  Porto Alegre: Globo, 1972.  96p.

Quarta elegia

Ó árvores da vida, quando atingireis o inverno?

Ignoramos a unidade. Não somos lúcidos como as aves

migradoras. Precipitados ou vagarosos

nos impomos repentinamente aos ventos

e tornamos a cair num lago indiferente.

Conhecemos igualmente o florescer e o murchar.

No entanto, em alguma parte, vagueiam os leões ainda,

alheios ao desamparo enquanto vivem seu esplendor.

 

Nós, porém, quando pensamos totalmente o Uno,

logo sentimos o lastro do Outro. A hostilidade

aguarda, muito perto. Os amantes não hesitam, sem cessar,

entre limites – êles que aspiravam refúgio, espaço, busca?

Compõe-se, então, para a fugitiva imagem de um momento

um fundo de oposição, penosamente, para que

a possamos ver; que clareza se nos proporciona,

a nós que ignoramos o contôrno da sensação,

aderidos ao exterior de sua forma. – Quem

desconhece a angustiosa espera diante

do palco sombrio do próprio coração?

Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário

de um adeus. Fácil de compreender. O jardim habitual

a oscilar ligeiramente. Só então aparece o bailarino.

Êle não. Basta. E enquanto se move com desenvoltura,

muda de aspecto; torna-se burguês

e entra na casa pela porta da cozinha.

Não quero essas máscaras ôcas, prefiro

o boneco de corpo cheio. Susterei

o títere, os cordéis e o rosto

feito de aparência. Estou aqui à espera.

Ainda que as lâmpadas se apaguem, ainda

que me digam: acabou-se, – ainda que do palco

se evole o vácuo na corrente de ar cinzento,

ainda que os antepassados silenciosos

não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo

a criança de olhos castanhos e estrábicos, –

ficarei à espera. Sempre há o que ver.

 

Não tenho razão? Tu, que por mim provaste

a amargura da vida, pai, penetrando

a minha, tu, que provaste a infusão

turva de meu destino, quando ao teu lado

crescia, e, inquieto pelo ressaibo de futuro

tão estranho, puseste à prova

meu olhar velado ainda; – tu, meu pai,

que desde que morreste, tantas vêzes

na esperança que levo em mim, tens mêdo,

e que por meu destino incerto abandonas

a serenidade dos mortos, reinos

de serenidade, – não tenho razão?

E vós – não tenho razão? – vós que me

amastes pelo tímido início de amor

que vos tinha e do qual me evadia,

pois o espaço que amava em vosso rosto

em espaço cósmico se transformava. – Enquanto

aguardo diante do palco dos títeres, – não,

quando me transformar inteiramente num intenso

olhar, um Anjo surgirá para refazer

o equilíbrio, como o autor que anima os títeres.

Anjo e boneco: haverá por fim espetáculo.

Congrega-se então o que, sem cessar.

nossa existência mesma desagrega. E nasce

das nossas estações o ciclo da transformação

total. Muito acima de nós, o Anjo brincará.

Olhai, os moribundos não mais suspeitariam

que é pretexto e irrealidade tudo o que aqui

fazemos. Oh, dias da infância, em que atrás

das figuras havia mais do que passado e em que

diante de nós não se abria o futuro!

Crescíamos, é certo. aspirando, às vêzes,

tornar-nos grandes, talvez por amor

daqueles que nada mais tinham, senão

o ser grandes. E lá permanecíamos,

em nossos caminhos solitários,

na alegria do perdurável, nos limites

do mundo e do brinquedo, no espaço que desde

a origem foi criado para um puro evento.

 

Quem mostra uma criança tal como é? Quem a

situa na constelação com a medida da distância

em suas mãos? Quem faz sua morte

com pão cinzento que endurece, – ou a abandona

dentro da bôca redonda, como o coração

de uma bela maçã?… Compreendemos facilmente

os criminosos. Mas isto: conter a morte,

tôda a morte, ainda antes da vida,

tão docemente contê-la e não ser perverso,

isto é inefável.

 

 

 

Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário de um adeus