Agora uma palavra negativa sobre as tentativas recentes de buscar a origem da justiça num terreno bem diverso – o do ressentimento.

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: companhia das Letras, 1998. 179p.

Antes direi nos ouvidos dos psicólogos, supondo que desejem algum dia estudar de perto o ressentimento: hoje esta planta floresce do modo mais esplêndido entre os anarquistas e anti-semitas, aliás onde sempre floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro cheiro. E como do que é igual sempre brotarão iguais, não surpreende ver surgir, precisamente desses círculos, tentativas como já houve bastantes – de sacralizar a vingança sob o nome de justiça –  como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar-ferido – e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos.(16) Quanto a este último ponto, eu não teria em absoluto o que objetar: tendo em vista o problema biológico no seu todo (em relação ao qual o valor desses afetos foi até hoje subestimado), isto me pareceria até mesmo um mérito. O que gostaria de sublinhar é a circunstância de que essa nova nuance de eqüidade científica (em favor do ódio, do despeito, da inveja, da suspeita, do rancor, da vingança) nasce do próprio espírito do ressentimento, pois essa “equidade científica” de pronto se detém e dá lugar a inflexões de parcialidade e inimizade mortal, quando se trata de um outro grupo de afetos que são, me parece, de valor biológico bem mais elevado que os reativos, e portanto mereceriam ser cientificamente avaliados e muito estimados: os afetos propriamente ativos, como a ânsia de domínio, a sede de posse, e outros assim. (E. Dühring, Valor da vida, Curso de filosofia, e no fundo em todas as suas obras.) (17) Apenas isto a dizer contra essa tendência em geral; mas quanto à afirmação específica de Dühring de que a nascente da justiça se acha no terreno do sentimento reativo, é preciso, em prol da verdade, contrapor-lhe bruscamente a afirmação inversa: o último terreno conquistado pelo espírito da justiça é o do sentimento reativo! Quando realmente acontece de o homem justo ser justo até mesmo com os que o prejudicam (e não apenas frio, comedido, distante, indiferente: ser justo é sempre uma atitude positiva), quando a elevada, clara, branda e também profunda objetividade do olho justo, do olho que julga, não se turva sequer sob o assalto da injúria pessoal, da derrisão e da calúnia, isto é sinal de perfeição e suprema mestria – algo, inclusive, que prudentemente não se deve esperar, em que não se deve facilmente acreditar. De ordinário, mesmo para as mais íntegras pessoas basta uma pequena dose de agressão, malícia, insinuação, para lhes fazer o sangue subir aos olhos e a imparcialidade sair dos olhos. O homem ativo, violento, excessivo, está sempre mais próximo da justiça que o homem reativo. Efetivamente por isso o homem agressivo, como o mais forte, nobre, corajoso, em todas as épocas possuiu um olhar mais livre, a consciência melhor: inversamente, já se sabe quem carrega na consciência a invenção da “má consciência” – o homem do ressentimento! Afinal, consultemos a história: a qual esfera sempre pertenceu até agora a administração do direito, e também a própria exigência de direito? À esfera dos homens reativos, talvez? Absolutamente não; mas sim à dos ativos, fortes, espontâneos, agressivos. Historicamente considerado, o direito representa – seja dito para desgosto do já mencionado agitador (o qual faz ele mesmo esta confissão: “a doutrina da vingança atravessa, como um fio vermelho da justiça, todos os meus trabalhos e meus esforços”) – justamente a luta contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes fazem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do pathos reativo e impor um acordo. Em toda parte onde se exerce e se mantém a justiça, vemos um poder mais forte que busca meios de pôr fim, entre os mais fracos a ele subordinados (grupos ou indivíduos), ao insensato influxo do ressentimento, seja retirando das mãos da vingança o objeto do ressentimento, seja colocando em lugar da vingança a luta contra os inimigos da paz e da ordem, seja imaginando, sugerindo ou mesmo forçando compromissos, seja elevando certos equivalentes de prejuízos à categoria de norma, à qual de uma vez por todas passa a ser dirigido o ressentimento. Mas o decisivo no que a autoridade suprema faz e impõe contra a vigência dos sentimentos de reação e rancor (18) – o que faz sempre, tão logo se sente forte o bastante -, é a instituição da lei, a declaração imperativa sobre o que aos seus olhos é permitido, justo, e proibido, injusto: após a instituição da lei, ao tratar abusos e atos arbitrários de indivíduos ou grupos inteiros como ofensas à lei como revoltas contra a autoridade mesma, ela desvia os sentimentos dos seus subordinados do dano imediato causado por tais ofensas, e assim consegue afinal o oposto do que deseja a vingança, a qual enxerga e faz valer somente o ponto de vista do prejudicado – : daí em diante o olho é treinado para uma avaliação sempre mais impessoal do ato, até mesmo o olho do prejudicado (mas este por último, como já se observou). – Segue-se que “justo” e “injusto” existem apenas a partir da instituição da lei (e não, como quer Dühring, a partir do ato ofensivo). Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo “injusto”, na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter. É preciso mesmo admitir algo ainda mais grave: que, do mais alto ponto de vista biológico, os estados de direito não podem senão ser estados de exceção, enquanto restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, a cujos fins gerais se subordinam enquanto meios particulares: a saber, como meios para criar maiores unidades de poder. Uma ordem de direito concebida como geral e soberana, não como meio na luta entre complexos de poder, mas como meio contra toda luta, mais ou menos segundo o clichê comunista de Dühring, de que toda vontade deve considerar toda outra vontade como igual, seria um princípio hostil à vida, uma ordem destruidora e desagregadora do homem, um atentado ao futuro do homem, um sinal de cansaço, um caminho sinuoso para o nada. –

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16. O que nessa frase foi vertido como “depois” corresponde a nachträglich, no original. Os demais tradutores também utilizam um advérbio de tempo semelhante, ou o ometem simplesmente. O tradutor Douglas Smith, porém, recore a retroactively, e para justificar esse uso invoca analogias com a noção freudiana de Nachträglichkeit, apresentada no caso clínico do Homem dos Lobos, de 1918. A meu ver, Smith incorre no mesmo tipo de erro que indigitou em Kaufmann, no caso de Aushebung:  confunde o sentido especial, “técnico”, que um termo assumiu em outro contexto, num outro autor, com o sentido geral, inespecífico, em que esse vocábulo é usado por Nietzsche. Por analogia com “anacronismo”, podemos chamar esse equívoco de “anatopismo”: o conceito está fora de seu lugar. Para uma discussão de nachträglich na psicanálise, ver Paulo César de Souza, As palavras de Freud (Ática).

17. Eugen Dühring (1833-1921): Filósofo e economista político alemão; foi criticado por Friedrich Engels em Anti-Dühring (1878)

18. “Sentimentos de reação e rancor”: Gegen-und Nachgesühle. Nas outras traduções: sentimientos contrarios e imitativos, sentiments contraris i secundaris, sentimenti avversi e pervicaci [adversos e obstinados], sentiments réactiifs, grudges and rancor, reactive and retroactive feelings. A preposição nach significa, enquanto indicação de tempo, “depois” (indicando direção no espaço, o que não é o caso, significa “para”. Na formação de palavras compostas, pode ter o sentido de imitação, de repetição, de consecutividade, de permanência, e outros mais. É interessante que esses vários sentidos sejam ilustrados pelas diferentes traduções dadas a Nachgesühle, reproduzidas acima. Entre elas, a mais pertinente me parece ser a de Kaufmann (a penúltima), pois ele considera a acepção de perman~encia ou inflexibilidade do sentimento – tangenciada na versão italiana -, de que é exemplo conhecido o verbo nachtragen (lit. “carregar depois”, ou seja, guardar rancor de alguém). Quanto à versão britânica (a última), Smith reincidiu na aproximação com o conceito psicanalítico, já apontada anteriormente.

Agora uma palavra negativa sobre as tentativas recentes de buscar a origem da justiça num terreno bem diverso – o do ressentimento.

Um comentário sobre “Agora uma palavra negativa sobre as tentativas recentes de buscar a origem da justiça num terreno bem diverso – o do ressentimento.

  1. Christyanne Kalid disse:

    Tia,

    Gostei muito do texto, mas fico pensando no empirismo Inglês onde nos diz que, a experiência vivida, evidência nossa percepção do mundo e não o raciocínio à priori somente.
    Com isso, fico me questionando a Ressignificação de algo nosso na sessão terapêutica, onde costumamos atribuir novos significados as nossas questões e visão de mundo.

    No espaço terapêutico se fala de moral, do bem,do mau etc.

    NIETZCHE, pelo que entendi nos propõe muito sabiamente a “busca da verdade, da impacialidade, neutralidade, perda de referenciais para que não se tenhamos diferenças nas forças reativas e ativas”.

    Fala da moral que surge e se origina diante daquilo que é útil a pessoa no momento, privilegiando alguns em detrimento de outros. E nos afirma que a linguagem, completaria também com a palavra por si mesma se torna utilitarista.

    A minha pergunta é: – Como fazer para parar os pensamentos, ações condicionadas, sentimentos vividos e sentidos.
    Para sermos mais verdadeiros consigo mesmo e com os pacientes?

    Beijos

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