Pobre, feliz e independente! – tais coisas juntas são possíveis; pobre, feliz e escravo!

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução P. C de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2004. 330p.

A classe impossível – […] isso também é possível,e eu não poderia dizer coisa melhor aos trabalhadores da escravidão fabril; supondo que não sintam como vergonhoso ser de tal usados, é o que sucede, como parafusos de uma máquina e, digamos, tapa-buracos da inventividade humana. Ora, acreditar que um pagamento mais alto pode remover o essencial de sua miséria, isto é, sua servidão impessoal! Ora, convencer-se de que um aumento dessa impessoalidade, no interior do funcionamento maquinal de uma nova sociedade, pode tornar uma virtude a vergonha da escravidão! Ora, ter um preço pelo qual não se é mais pessoa, nações que querem sobretudo produzir o máximo possível e tornar-se o mais ricas possível? Deveriam, isto sim, apresentar-lhes a contrapartida: as enormes somas de valor interior que são lançadas fora por um objetivo assim exterior! Mas onde está o seu valor interior, se nem sabem mais o que significa respirar livremente? Se mal têm a posse de si mesmos? Se com freqüência estão enjoados de si, como de uma bebida esquecida e estragada? Se dão ouvidos aos jornais e olham de soslaio para o vizinho rico, tornados invejosos pelo rápido sobe-e-desce poder, riqueza e opiniões? Se não mais crêem na filosofia que se veste de andrajos, na franqueza de quem não tem necessidades? Se a idílica pobreza voluntária, a ausência de profissão e o celibato, que bem conviria aos mais espirituais entre vocês, tornou-se-lhes motivo de riso? Se, por outro lado, sempre têm nos ouvidos a flauta dos aliciadores socialista, que querem inflamá-los com doidas esperanças? Que lhes dizem para estar prontos e nada mais, prontos de hoje para amanhã, de modo que esperam sem cessar por algo de fora, e, de resto, vivem como sempre viveram – até que essa espera se torne fome, sede e febre, e afinal o dia da bestia triumphans [besta triunfante] nasça com todo o esplendor? – Em oposição a isso, cada qual deveria pensar consigo: “É melhor emigrar, tentar ser senhor em regiões novas e selvagens do mundo, e principalmente senhor de mim mesmo; mudar de local, enquanto me acenar alguma escravidão; não fugir à aventura e à guerra e ter a morte à mão para os piores casos: menos essa indecorosa servidão, esse tornar-se azedo, venenoso e conspirador!”. Esta seria a atitude correta: os trabalhadores da Europa deveriam declarar-se uma impossibilidade humana como classe, e não apenas, como em geral sucede, como algo duramente e impropriamente organizado; eles deveriam suscitar, na colmeia européia, uma época de enxames migratórios como jamais houve, e, com esse ato de livre mobilidade em grande estilo, protestar contra a máquina, o capital e a escolha que agora os ameaça, de ter de tornar-se escravos do Estado ou escravos de um partido da subversão. Que a Europa seja aliviada de um quarto de seus habitantes! Ela e eles terão um coração mais leve! Apenas em lugares distantes, nos empreendimentos de colonizadores entusiasmados, será percebido quanta razão equanimidade, quanta sadia desconfiança a mãe Europa instilou em seus filhos – esses filhos não mais suportavam viver junto a ela, a velha senhora embotada, e arriscavam tornar-se rabugentos, irritados e ávidos de prazer como ela. Fora da Europa, as virtudes da Europa estarão pelo mundo com esses trabalhadores; e aquilo que no interior da pátria começava a degenerar em perigoso desânimo e tendência criminosa, no exterior ganhará uma bela naturalidade selvagem e se chamará heroísmo. – desse modo chegaria finalmente um ar mais limpo à velha, agora superpovoada e cismadora Europa! Não importa que venha a faltar alguma “mão-de-obra”! Talvez as pessoas se recordem, então, que a muitas necessidades ela se acostumaram apenas quando se tornou apenas fácil satisfazê-las – será preciso desaprender algumas delas! Talvez busquem chineses então: e estes trariam o modo de pensar e de viver que convém a laboriosas formigas. E poderiam mesmo contribuir para injetar no sangue da inquieta e extenuada Europa alguma calma e contemplatividade asiática, assim como – o que mais é necessário – perseverança asiática.

Pobre, feliz e independente! – tais coisas juntas são possíveis; pobre, feliz e escravo!

O segredo noturno

NIETZSCHE, F.W., 1844-1900. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução P. C de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 330p.

Ontem à noite, quando tudo dormia

E o vento, com lamento

Indecisos, pelas vielas corria,

Não me dava repouso o travesseiro

Nem a papoula, nem o que normalmente

Dá sono profundo a consciência tranquila.

Enfim renunciei ao sono

E corri para a praia. Havia luar

E o tempo era bom encontrei

O homem e o barco areia morna,

Os dois sonolentos, pastor e ovelha: – Sonolento, afastou-se da terra o barco.

Após uma hora, talvez duas,

Ou teria sido um ano? – subitamente

Meus sentidos e pensamentos mergulharem

Numa eterna monotonia,

E um abismo sem limites

Se abriu: – tudo acabou!

Veio a manhã: em negras profundezas

Há um barco, que repousa, repousa..

Que aconteceu? alguém gritou logo gritaram

Centenas de vozes: Que houve? Sangue? –

Nada aconteceu! Nós todos dormíamos,

Dormíamos ah, tão bem!

O segredo noturno

Pedindo a palavra

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 349p.

Um olhar sobre o Estado. O caráter demagógico e a intenção de influir sobre as massas são comuns a todos os partidos políticos atuais: por causa dessa intenção, todos são obrigados a transformar seus princípios em grandes afrescos de estupidez, pintando-os nas paredes. Nisso já não há o que fazer, é inútil erguer um só dedo contra isso; pois nesse âmbito vale o que afirmou Voltaire: quand la populace se mêle de raisonner, tout est perdu [ quando o populacho se mete a raciocinar, tudo está perdido]. (144) Desde que isso aconteceu, é preciso adaptar-se às novas condições, assim como nos adaptamos quando um terremoto muda as velhas fronteiras e os contornos do solo e altera o valor da propriedade. Além do mais, se em toda política a questão é tornar a vida suportável para o maior número de pessoas, que esse maior número defina o que entenda por uma vida suportável; se confiam que o seu intelecto achará também os meios certos para alcançar este fim, de que serve duvidar disso? Eles querem ser os forjadores da própria felicidade ou infelicidade; e, se este sentimento de autodeterminação, o orgulho pelas cinco ou seis noções que a sua mente abriga e manifesta, realmente lhes torna a vida agradável a ponto de suportarem com gosto as fatais conseqüências de sua estreiteza: então não há muito a objetar, desde que a estreiteza não vá ao cúmulo de exigir que tudo deve se tornar política nesse sentido, que todos devem viver e agir conforme esse critério. Pois antes de mais nada é preciso permitir a alguns, mais do que nunca, que se abstenham da política e se coloquem um pouco à parte: a isso também os impele o prazer da autodeterminação, e também algum orgulho que talvez derive do fato de calar, quando falam muitos ou mesmo apenas muitos. Depois é preciso perdoar esses poucos, se eles não levarem muito a sério a felicidade dos muitos, sejam povos ou camaradas da população, e vez por outra incorrerem numa atitude irônica; pois sua seriedade reside em outro canto, sua felicidade é um outro conceito, seu objetivo não pode ser abarcado por uma mão canhestra que dispõe de apenas cinco dedos. Por fim, de quando em quando chega – o que sem dúvida é o mais difícil de lhes conceder, mas tem de lhes ser concedido – um instante em que eles saem de seu taciturno isolamento e de novo experimentam a força de seus pulmões: então gritam uns para os outros, como gente perdida numa floresta, para se dar a conhecer e se encorajar mutuamente; e é, certo que então se ouvem coisas que soam mal aos ouvidos para os quais não foram dirigidas – Logo depois faz-se um novo silêncio na floresta, tanto silêncio que de novo se escuta claramente o zumbido, o sussurro e o bater de asas dos incontáveis insetos que vivem no seu interior e também acima e abaixo dela.

Pedindo a palavra