O conflito entre ética e sexualidade, não é uma simples colisão entre instintividade e moral […]

JUNG, C. G., 1875-1961. A energia psíquica. Tradução M. L. Appy. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. 99p.

[…] mas uma luta pelo direito de existir de um instinto ou pelo reconhecimento de um poder que se expressa através desse instinto, com o qual parece que não dá para brincar e que, por isso mesmo, não se submete aos nossos preceitos morais bem-intencionados. A sexualidade não é apenas um instinto, mas ela é também, sem dúvida alguma, uma força criativa que não é só a causa fundamental da nossa vida individual, mas também um fator a ser levado a sério em nossa vida psíquica. Hoje conhecemos sobejamente as consequências preocupantes acarretadas pelas perturbações da sexualidade. Poderíamos chamar a sexualidade de porta-voz dos instintos, e é por isso que o ponto de vista espiritual nela vê seu principal adversário; não porque o desregramento sexual seja mais imoral do que a voracidade, a bebedeira, a cobiça, a tirania e o vício do esbanjamento, mas porque o espírito antevê na sexualidade uma contraparte de natureza igual e até análoga a ele. Pois tal como o espírito quer subordinar a sexualidade assim como todos os demais instintos à sua forma, a sexualidade também reivindica um direito antigo sobre o espírito, que no passado estava nela contido – no ato da concepção, na gravidez, nascimento e infância -, e de cuja paixão o espírito não pode prescindir em suas criações. O que é o espírito, afinal, se um instinto de igual natureza não se opusesse a ele? Seria apenas uma forma vazia. Respeitar os outros instintos com sensatez já é natural para nós; mas com a sexualidade é diferente, ela ainda é problemática para nós. Neste ponto ainda não conseguimos atingir a consciência que nos possibilite fazer plena justiça ao instinto, sem um considerável dano moral. Freud não é apenas um cientista pesquisador, mas ele é também um advogado da sexualidade, razão pela qual reconheço que seu conceito sexual se justifica moralmente pelo menos em razão da grande importância do problema sexual, sem que eu tenha condições de aceitar o seu conceito também cientificamente.

Não cabe discutir aqui os motivos possíveis da atitude contemporânea em relação à sexualidade. Bastaria dizer que a sexualidade parece ser o instinto mais forte e imediato (69), razão pela qual ela se apresenta como sendo o instinto. Mas, além disso, tenho que salientar também que o princípio espiritual, a rigor, não colide com o instinto mas com a instintividade entendida como uma superioridade injustificada da natureza instintiva em relação ao espiritual. O espiritual também se apresenta no psiquismo como um instinto, e até como uma verdadeira paixão como se expressa Nietzsche em certa ocasião, “como um fogo devorador”. Não é um derivado de outro instinto, como a psicologia do instinto gostaria que fosse, mas um princípio sui generis, a saber, a forma imprescindível à força instintiva. Devo remeter o leitor aqui a um estudo específico onde tratei deste problema (70).

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69. Não é este o caso entre os povos primitivos, em que a questão do estômago ocupa um lugar muito mais importante.

70. Cf. “Instinto e inconsciente” [Dissertação VI do vol. 8/2}.

O conflito entre ética e sexualidade, não é uma simples colisão entre instintividade e moral […]

Não tenha medo do passado. Se alguém lhe disser que ele é irrevogável, não acredite.

WILDE, O., 1854-1900. De Profundis e outros escritos do cárcere. Tradução J. Tettamanzy e M. A. de Aguiar. Porto Alegre: L&PM, 2018. 176p.

Epistola: In Carcere et Vinculis

Prisão de Sua Majestade, Reading.

Querido Bosie*:

Depois de longa e infrutífera espera decidi escrever-lhe, tanto para o seu próprio bem quanto para o meu, pois não me agradaria pensar que suportei dois longos anos de cárcere sem receber uma só linha sua, ou mesmo qualquer recado ou notícia, salvo algumas que só me trouxeram sofrimento.

Nossa malfadada e lamentável amizade acabou levando-me à ruína e ao descrédito público e, no entanto, a lembrança da antiga afeição que nos unia está sempre comigo e é bem triste para mim pensar que o ódio, o desprezo e o rancor tomarão para sempre em meu coração o lugar antes ocupado pelo amor. Creio que, no íntimo, você sentirá que é bem melhor escrever-me enquanto amargo a solidão do cárcere do que publicar minhas cartas sem meu consentimento ou dedicar-me poesias que não solicitei, embora o mundo jamais venha a conhecer quaisquer palavras de remorso ou paixão, de dor ou indiferença que você decida enviar-me como resposta ou apelo.

Não tenho nenhuma dúvida de que nesta carta, em que é preciso que eu escreva sobre a sua vida e a minha, sobre o passado e o futuro, sobre coisas boas que se transformaram em amargura e amarguras que poderiam transformar-se em alegrias, haverá muita coisa capaz de ferir profundamente a sua vaidade. Se isso acontecer, leia e releia a carta até conseguir eliminar essa vaidade. Se encontrar nela alguma acusação que lhe pareça injusta, lembre-se que devemos ser sempre gratos por qualquer falta da qual possamos ser injustamente acusados. E se encontrar nela uma só passagem capaz de fazer com que seus olhos se encham de lágrimas, chore como nós choramos na prisão, onde tanto o dia quanto a noite foram feitos para as lágrimas. Esta é a única coisa que pode salvá-lo. Se, porém, for procurar sua mãe para queixar-se, como fez quando eu me referi a você com tanto desprezo na carta que escrevi a Robbie, para que ela possa adulá-lo e lisonjeá-lo, fazendo retornar todo o seu orgulho e a sua satisfação consigo mesmo, estará completamente perdido. Pois se conseguir encontrar uma só justificativa para o seu comportamento, não tardará a encontrar mais de cem e voltará a ser exatamente o que era antes. Ainda diz, como disse a Robbie em resposta à carta que lhe escreve, que eu “atribuía a você motivações bem pouco dignas”? Uma motivação é um objetivo intelectual e você tinha apenas apetites. Que você era “muito jovem” quando a nossa amizade começou? Mas se o seu mal não era que soubesse tão pouco sobre a vida, mas que soubesse tanto! Ao me conhecer, já havia deixado para trás o amanhecer da infância com seu delicado viço, sua luz pura e clara, sua alegre inocência tão plena de esperanças. Com passos rápidos e apressados, havia passado do Romance ao Realismo. O esgoto, e tudo o que nele vive, já tinha começado a exercer sobre você o seu fascínio. Esta foi a causa do problema que fez com que você me procurasse em busca de auxílio, quando eu, tão imprudentemente e indo contra a sabedoria do mundo, por compaixão e bondade, decidi auxiliá-lo. É preciso que você leia esta carta, embora cada palavra possa feri-lo assim como o fogo ou o bisturi do cirurgião fazem arder e sangrar a carne delicada. Lembre-se que há uma grande diferença entre aquele a quem os deuses julgam tolo e aquele que parece tolo aos olhos dos homens. É possível ignorar inteiramente todas as formas que a arte pode assumir em suas diversas manifestações ou os processos de evolução do pensamento, o esplendor de um verso latino, a musicalidade tão cheia de vogais do idioma grego, da escultura toscana ou da canção elisabetana e ainda assim estar cheio da mais doce sabedoria. O verdadeiro tolo, de quem os deuses zombam e a quem tentam destruir, é aquele que não conhece a si próprio. Durante muito tempo eu fui um deles. Você também: deixe de sê-lo. Não tenha medo. O supremo pecado é a superficialidade. Tudo que é realizado é certo. Lembre-se também que por mais que sofra ao ler esta carta, eu sofri muito mais ao escrevê-la. Os Poderes Invisíveis foram generosos com você. Permitiram-lhe ver os aspectos mais estranhos e trágicos da vida como quem vê as sombras refletidas no cristal. Permitiram-lhe como uma imagem vista através do espelho. Você pode caminhar livremente por entre as flores, enquanto eu me vi privado do maravilhoso mundo das cores e do movimento.

Começarei por dizer-lhe que me julgo terrivelmente culpado. Aqui na minha cela escura, envergando este uniforme de prisioneiro, um homem desgraçado e totalmente arruinado, eu me julgo culpado. Nas agitadas noites cheias de angústia, nos longos e monótonos dias cheios de sofrimento, é a mim que eu culpo. Culpo a mim mesmo por ter permitido que uma amizade que nada tinha de intelectual, uma amizade cujo objetivo principal jamais foi a criação ou a contemplação do belo, dominasse inteiramente a minha vida. Desde o início, sempre houve um abismo muito grande a separar-nos. Você fora indolente durante o curso secundário e bem mais do que isso na universidade. Nunca foi capaz de entender que um artista, e especialmente um artista como eu, para quem a qualidade das obras que cria depende de uma intensificação da personalidade, necessita, para que sua arte possa desenvolver-se, de um ambiente onde haja perfeita comunhão de ideia, de uma atmosfera intelectual, de silêncio paz e solidão. Você só admirava o meu trabalho depois de vê-lo terminado. Apreciava o brilhantismo das noites de estreia, e dos banquetes que se seguiam. Sentia-se orgulhoso – o que é muito natural – por ser o amigo mais íntimo de um artista tão famoso. Mas era incapaz de perceber as condições necessárias à criação de uma obra artística. Não estou lançando mão de frases cheias de exagero retórico, mas apenas de palavras que expressam a mais absoluta fidelidade aos fatos, quando afirmo que durante todo o tempo em que estivemos juntos eu não escrevi sequer uma linha. Fosse em Torquay, Londres, Florença, ou qualquer outro lugar, enquanto esteve ao meu lado, minha vida foi totalmente estéril e improdutiva. E lamento dizer que, exceto por breves intervalos, você esteve sempre a meu lado. […]

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*Diminutivo familiar de Lorde Alfred Douglas. (N.T.)

Não tenha medo do passado. Se alguém lhe disser que ele é irrevogável, não acredite.

As pessoas hoje em dia não entendem o que é crueldade.

WILDE, O., 1854-1900. De Profundis e outros escritos do cárcere. Tradução J. Tettamanzy e M. A. Aguiar. Porto Alegre: L&PM, 2018. 171p.

1ª carta pós-prisão de Wilde para o Daily Chronicle

Para o Editor

27 de maio de 1897*, Dieppe

Senhor, soube com grande pesar, através das colunas de seu jornal, que o carcereiro Martin, da Prisão de Reading, foi demitido pela Comissão da Prisão por ter dado biscoitos a um menininho faminto. Eu mesmo vi os três meninos na segunda-feira que precedeu minha libertação. Eles tinham sido condenados recentemente e estavam em uma fila, no hall central, vestidos com a roupa da prisão e carregando seus lençóis embaixo do braço, antes de serem mandados para as suas celas. Eu casualmente passava por uma das galerias, em direção à recepção onde teria uma entrevista com um amigo. Eles eram crianças bem pequenas, o menor – para o qual o carcereiro deu os biscoitos – uma figurinha tão miúda que eles, evidentemente, não tiveram condições de encontrar roupas que o servissem. É claro que eu já tinha visto muitas crianças presas durante os dois anos que estive confinado. A Prisão de Wandsworth, em especial, tinha sempre um grande número de crianças. Mas a criancinha que eu vi na tarde de segunda-feira, dia 17, em Reading, era menor do que qualquer uma delas. Nem é preciso dizer o quão profundamente abalado fiquei ao ver essas crianças em Reading, porque eu sabia o tratamento que lhes estava reservado. A crueldade que é praticada em crianças, dia e noite, nas prisões inglesas, é inacreditável, exceto para os que já testemunharam e estão cientes da brutalidade do sistema.

As pessoas hoje em dia não entendem o que é crueldade. Elas a veem como um tipo terrível de instinto medieval e a conectam com homens tais como Eccelino da Romano* e outros, para quem a deliberada inflição de dor provocava um louco. Mas homens da laia de Eccelino são simplesmente espécies anormais de individualismo pervertido. A crueldade ordinária é mera estupidez. É uma total falta de imaginação. É o resultado, hoje em dia, de sistemas estereotipados de regras rígidas e imutáveis, e de imbecilidade. Onde há centralização há imbecilidade. O que é desumano na vida moderna é o oficialismo. A autoridade é destrutiva tanto para quem a exerce quanto para os que a sofrem. A Direção da Prisão, e o sistema que ela põe em prática, é a fonte básica da crueldade praticada em uma criança presa. As pessoas que apoiam o sistema têm excelentes intenções. Aqueles que o executam são, também, humanos em suas intenções. A responsabilidade é transferida para as regras disciplinares. Acredita-se que quando uma coisa é regra ela é certa.

O atual tratamento das crianças é terrível, principalmente por parte das pessoas que não entendem a psicologia peculiar da natureza de uma criança. Uma criança consegue entender uma punição imposta por uma pessoa, tal como pai, mãe ou responsável, e suportá-la com um certo grau de aquiescência. O que ela não consegue entender é uma punição imposta pela sociedade. Ela não consegue compreender o que é a sociedade. Com adultos acontece o contrário, é claro. Aqueles de nós que estão na prisão têm condições de entender, e entendem, o que significa aquela força coletiva chamada sociedade e, qualquer que seja nossa opinião sobre seus métodos ou exigências, podemos nos forçar a aceitá-los. A punição imposta por um indivíduo, por outro lado, é algo que nenhum adulto suporta ou se espera que vá suportar.

A criança, consequentemente, tirada dos seus pais por pessoas que nunca viu e sobre as quais ela nada sabe, e encontrando-se em uma cela solitária e desconhecida, seguida por rostos estranhos e dominada e punida por representantes de um sistema, o qual não consegue entender, torna-se uma presa fácil para a primeira e mais proeminente emoção produzida pela vidas nas prisões modernas – a emoção do terror. O terror de uma criança na prisão é quase sem limites. Eu lembro uma vez em Reading, ao sair para fazer exercícios, de ver um menininho na escura cela em frente à minha. Dois carcereiros – não desumanos – estavam conversando com ele, aparentemente com alguma aspereza ou talvez dando alguns conselhos úteis sobre sua conduta. Um estava na cela com ele e outro estava fora. O rosto da criança estava branco de puro terror. Havia em seus olhos o medo de um animal caçado. Na manhã seguinte, no café, eu o vi chorando e pedindo para ser solto. Ele chorava e pedia por seus pais. De tempos em tempos eu ouvia a voz do carcereiro de plantão mandando-o ficar quieto. Todavia ele ainda nem tinha sido condenado por qualquer que fosse o pequeno delito do qual era acusado. Ele estava simplesmente em prisão preventiva. Eu soube disso ao observar que ele usava suas próprias roupas, as quais me pareceram bem ajeitadas. Entretanto ele estava usando meias e sapatos da prisão. Isto mostrava que era um menino muito pobre cujos sapatos, se é que ele tinha algum, estavam em péssimo estado. Os Juízes, uma classe via de regra totalmente ignorante, com frequência ordenam a detenção de crianças por uma semana e depois suspendem qualquer que seja a sentença que eles teriam que cumprir. eles chamam isso de “não mandar uma criança para a prisão”. Isso é sem dúvida uma visão estúpida. Para uma criança pequena, a diferença entre estar detido ou condenado é uma sutileza que ela não consegue compreender. Para ela o terrível é estar ali. Aos olhos da humanidade, deveria ser terrível ela estar ali. […]

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  • A carta foi datada dessa maneira quando de sua publicação no Daily Chronicle, sob o cabeçalho “O Caso do Carcereiro Martin, Algumas Crueldades da Vida em Prisão, no dia 28 de maio, mas foi iniciada presumivelmente por volta do dia 24, quando o Daily Chronicle publicou uma carta do carcereiro Martin contando as circunstâncias de sua demissão. foi adicionado um comentário do Editor: ‘Nós não temos condições, é claro, de verificar as afirmações de nosso correspondente, mas a publicamos.” No dia 28, a carta de Wilde teve o apoio de dois editorias e de outra carta de Martin, discutindo uma declaração do Secretário dos Negócios do Interior que desmentia as acusações do carcereiro. (N.E.)

As pessoas hoje em dia não entendem o que é crueldade.

A sexualidade não é apenas um instinto …

JUNG, C. G. 1875-1961. A energia psíquica. Tradução M. L. Appy. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. 99p.

[…] O conflito entre ética e sexualidade, hoje em dia, não é uma simples colisão entre instintividade e moral, mas uma luta pelo direito de existir de um instinto ou pelo reconhecimento de um poder que se expressa através desse instinto, com o qual parece que não dá para brincar e que, por isso mesmo, não se submete aos nossos preceitos morais bem-intencionados. A sexualidade não é apenas um instinto, mas ela é também, sem dúvida alguma, uma força criativa, que não é só a causa fundamental da nossa vida individual, mas também um fator a ser levado a sério em nossa vida psíquica. Hoje conhecemos sobejamente as consequências preocupantes acarretadas pelas perturbações da sexualidade. Poderíamos chamar a sexualidade de porta-voz dos instintos, e é por isso que o ponto de vista espiritual nela vê seu principal adversário; não porque o desregramento sexual seja mais imoral do que a voracidade, a bebedeira, a cobiça, a tirania e o vício do esbanjamento, mas porque o espírito antevê na sexualidade uma contraparte de natureza igual e até análoga a ele. Mas tal como o espírito quer subordinar a sexualidade assim como todo os demais instintos à sua forma, a sexualidade também reivindica um direito antigo sobre o espírito, que no passado estava nele contido – no ato da concepção, na gravidez, nascimento e infância -, e de cuja paixão o espírito não pode prescindir em suas criações. O que é o espírito, afinal, se um instinto de igual natureza não se opusesse a a ele? Seria apenas uma forma vazia. Respeitar os outros instintos com sensatez já é natural para nós; mas com a sexualidade é diferente, ela ainda é problemática para nós. Neste ponto ainda não conseguimos atingir a consciência que nos possibilite fazer plena justiça ao instinto, sem um considerável dano moral. Freud não é apenas um cientista pesquisador, mas ele é também um advogado da sexualidade, razão pela qual reconheço que seu conceito sexual se justifica moralmente pelo menos em razão da grande importância do problema sexual, sem que eu tenha condições de aceitar o seu conceito também cientificamente. […]

A sexualidade não é apenas um instinto …

Chuva, amiga dos sonhadores e dos desesperados, companheira dos inativos e dos sedentários, agita, esfarela tuas borboletas de vidro sobre os metais da terra […]

NERUDA, P., 1904-1973. Pelas praias do mundo. Tradução M. Pontes. 3. ed. Rio de Janeiro: Bernard Brasil, 2005. 320p.

Solidão dos povoados

Na noite oceânica ladram os cães desorientados, da água sobre o coro das rãs, e esse ruído de águas, e essa aspiração dos seres se estira e se intercepta entre os grandes rumores do vento. Assim a noite passa, surrada de margem a margem pela recusa dos ventos, como um aro de escuros metais, lançado do norte para os campanários do sul.

O amanhecer solitário, empurrado e retido como um barco amarrado oscila até o meio-dia e aparece na solidão do povoado a tarde de telhados azuis, branca vela mestra do navio desaparecido.

Diante da minha janela e dos pomares verdejantes, para além das casas do rio, três outeiros se apóiam no céu tranqüilo. Cinzentos, amarelados paralelogramos de aradas e semeaduras, caminhos carroçáveis, capões de mato, árvores isoladas. O longo outeiro de cereais dourados quebra contra as alturas as lentas e uniformes ondas.

A chuva aparece na paisagem, cai cruzando-se de todos os lados do céu. Vejo agacharem-se os grandes girassóis dourados e sob seu véu palpitante obscurecer-se o horizonte dos outeiros. Chove sobre o povoado, a água baila dos subúrbios de Coilaco até a encosta dos outeiros; o temporal corre pelas telhas, entra pelas quintas, nos campos de jogo; ao lado do rio, entre moitas e pedras, o tempo ruim povoa os campos de aparições de tristeza.

Chuva, amiga dos sonhadores e dos desesperados, companheira dos inativos e dos sedentários, agita, esfarela tuas borboletas de vidro sobre os metais da terra, corre pelas antenas e as torres, estatela-te contra as casas e os telhados, desmantela o desejo de agir e ajuda a solidão diante ou atrás das janelas, a solidão que solicita tua presença. Conheço teu rosto inumerável, distingo tua voz e sou tua sentinela, o que desperta ao teu chamado na aterradora tormenta terrestre e sai do sonho a fim de recolher teus colares enquanto cais sobre os caminhos e as casas, e ressoas como o percutir de sinos, e molhas os frutos da noite, e submerges profundamente tuas rápidas viagens sem sentido. Assim bailas sustendo-te entre o céu lívido e a terra como um grande fuso de prata girando entre seus fios transparentes.

Entre as folhas molhadas, gotas pesadas como frutas estão suspensas de ramos; gotas pesadas como frutas estão suspensas dos ramos; cheiro de terra, de madressilvas umedecidas; abro o portão pisando as ameixas desgarradas, caminho por baixo dos esgalhos verdes e molhados. De repente o céu aparece entre eles como o fundo de minha taça azul, limpo de chuva, sustido pelos ramos e perigosamente frágil. O cão que me acompanha cheio de gotas como um vegetal. Ao passar pelas touças de milho ele verte pequeninas chuvas e dobra os grandes girassóis que imediatamente pregam suas brilhantes insígnias em meu peito.

Num sobressalto dás as caras, certo de que a água já fugiu, e corres em sigilo sob o temporal, ao encontro dos outeiros, abarcas os anéis de ouro que se perdem nos charcos do povoado.

Há uma avenida de eucaliptos, há poças embaixo deles, eles ressumantes de sua forte fragrância de inverno. A grande dor, o peso das coisas gravita conforme vou andando. A solidão é grande em torno de mim, as luzes começam a subir às janelas e os trens choram, lá longe, antes de entrar nos campos. Existe uma palavra que explica o peso desta hora, buscando seu caminho sob os eucaliptos taciturnos, e pequenas estrelas começam a aparecer nos charcos obscurecendo-se.

Eis aqui a noite que desce dos outeiros de Temuco.

Chuva, amiga dos sonhadores e dos desesperados, companheira dos inativos e dos sedentários, agita, esfarela tuas borboletas de vidro sobre os metais da terra […]

Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo?

FREUD, S., 1856-1939. O futuro de uma ilusão. Tradução R. Zwick. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2018. 137p.

Retomemos o fio da investigação: qual é, pois, o significado das ideias religiosas? Como podemos classificá-las? Não é fácil, de modo algum, responder a essa questão imediatamente. Depois de rejeitar diversas formulações, nos deteremos nesta: as ideias religiosas são proposições, são enunciados acerca de fatos e circunstâncias da realidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivíduo não encontrou por conta própria, e que se reivindicam que se creia nelas. Visto que informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração. Quem delas nada sabe é deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentos pode se considerar muito enriquecido.

Obviamente, há muitas dessas proposições sobre as coisas mais variadas deste mundo. Cada lição escolar está cheia delas. Tomemos a de geografia. Lá ouviremos que Constança se localiza junto ao lago do mesmo nome. Uma canção de estudantes acrescenta: “E quem não crer, que vá lá ver”. Estive lá, casualmente, e posso confirmar que a bela cidade se encontra às margens de um vasto lago que todos os habitantes dos arredores chamam de Lago de Constança. Agora estou plenamente convencido da veracidade dessa afirmação geográfica. Isso me faz lembrar de uma outra experiência, bastante notável. Eu era um homem maduro quando pisei pela primeira vez a colina da acrópole de Atenas, em meio às ruínas do templo e com vista para o mar azul. À minha felicidade se misturava um sentimento de espanto, que me sugeriu a seguinte interpretação: “Então é realmente como aprendemos na escola! Como deve ter sido débil e superficial a crença que adquiri na verdade real do que foi ouvido naquele tempo se hoje posso ficar tão espantado!” Mas não quero dar ênfase excessiva à significação dessa experiência; há ainda uma outra explicação possível para o meu espanto, que não me ocorreu na ocasião, cuja natureza é inteiramente subjetiva e está ligada à singularidade do lugar.

Todas essas proposições, portanto, reivindicam a crença em seus conteúdos, mas não sem fundamentar sua pretensão. Elas se apresentam como o resultado abreviado de um longo processo de pensamento baseado na observação e, certamente, também na dedução; e a quem tiver o intuito de refazer esse processo por conta própria, em vez de aceitar seu resultado, elas mostram o caminho. Quando a proposição não é evidente como no caso de afirmações geográficas, sempre se acrescenta também a proveniência do conhecimento que ela anuncia. Por exemplo, o conhecimento de que a Terra tem a forma de uma esfera; como provas disso, são aduzidos o experimento de Foucault com o pêndulo, o comportamento do horizonte e a possibilidade de circum-navegá-la. Visto que é impraticável, conforme reconhecem todos os interessados, enviar todos os escolares em viagens de circum-navegação, a escola se contenta em deixar que seus ensinamentos sejam aceitos de “boa-fé”, sabendo, porém, que o caminho para a convicção pessoal permanece aberto.

Tentemos medir as proposições religiosas com o mesmo critério. Quando perguntamos sobre o fundamento da pretensão de que se acredite nelas, recebemos três respostas que se harmonizam notavelmente mal entre si. Em primeiro lugar, merecem crédito porque nossos ancestrais já acreditavam nelas; em segundo lugar, possuímos provas que nos foram transmitidas precisamente dessa época antiga, e, em terceiro lugar, é absolutamente proibido questionar essa comprovação. No passado, esse atrevimento era punido com os mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade vê com desagrado que alguém o renove.

Esse terceiro ponto precisa despertar as nossas mais fortes reservas. A única motivação de semelhante proibição só pode ser o fato de que a sociedade conhece muito bem o caráter duvidoso da pretensão que reclama para suas doutrinas religiosas. Caso contrário, ela certamente colocaria o material necessário, com a maior boa vontade, à disposição de todo aquele que busca formar a sua própria convicção. Por isso, passamos ao exame dos dois outros argumentos com uma desconfiança difícil de apaziguar. Devemos acreditar porque nossos ancestrais acreditaram. Esses nossos antepassados, porém, eram muito mais ignorantes do que nós; eles acreditavam em coisas que hoje nos são impossíveis de aceitar. Manifesta-se a possibilidade de que as doutrinas religiosas também possam ser desse tipo. As provas que nos deixaram estão registradas em escritos que trazem, eles próprios, todos os sinais de serem indignos de confiança. São contraditórios, retocados e falsificados; quando relatam comprovações efetivas, eles próprios carecem de comprovação. Não ajuda muito afirmar que suas formulações, ou apenas seus conteúdos, têm origem na revelação divina, pois essa afirmação mesma já é uma parte daquelas doutrinas cuja credibilidade deve ser investigada, e nenhuma proposição pode provar a si mesma.

Chegamos assim ao estranho resultado de que precisamente as comunicações de nosso patrimônio cultural que poderiam ter para nós o maior dos significados, às quais cabe a tarefa de nos esclarecer os enigmas do mundo e nos reconciliar com os sofrimentos da vida – de que precisamente elas possuem a mais fraca comprovação. Não poderíamos nos decidir a aceitar um fato para nós tão indiferente quanto o de que as baleias parem seus filhotes em vez de colocar ovos se ele não fosse melhor demonstrável.

Esse estado de coisas é por só um problema psicológico bastante notável. E que ninguém acredite que as observações anteriores acerca da indemonstrabilidade das doutrinas religiosas contenham algo novo. Ela foi percebida em todas as épocas, e certamente também pelos antepassados que legaram tal herança. É possível que muitos deles tenham nutrido as mesmas dúvidas que nós, porém se encontravam sob uma pressão forte demais para que ousassem expressá-las. E, desde então, um número incontável de homens se atormentou com as mesmas dúvidas, que queriam sufocar porque se julgavam obrigados a crer; muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito; muitos caracteres sofreram danos em razão dos compromissos em que buscavam uma saída.

Se todas as provas apresentadas em favor da credibilidade das proposições religiosas provêm do passado, é natural verificar se o presente, que pode ser julgado com mais acerto, também pode oferecer tais provas. Se, dessa forma, se conseguisse colocar a salvo de dúvidas mesmo que apenas uma única parte do sistema religioso, o todo ganharia extraordinariamente em credibilidade. É aqui que entra a atividade dos espíritas, que estão persuadidos da continuidade da alma individual e que pretendem nos demonstrar que essa proposição da doutrina religiosa é isenta de dúvidas. Infelizmente, não conseguem refutar o fato de as aparições e manifestações de seus espíritos serem apenas produtos de sua própria atividade psíquica. Eles evocaram os espíritos dos maiores homens, dos mais destacados pensadores, mas todas as manifestações e notícias que deles receberam foram tão tolas, tão inconsolavelmente ocas, que não se pode acreditar em outra coisa senão na capacidade dos espíritos de se adaptarem ao círculo de pessoas que os invoca.

Agora é preciso mencionar duas tentativas que dão a impressão de um empenho obstinado em fugir ao problema. Uma delas, de natureza forçada, é antiga; a outra, sutil e moderna. A primeira é o credo quia absurdum (4) do padre da Igreja. Isso significa que as doutrinas religiosas escapam às reivindicações da razão, que estão acima dela. Deve-se perceber a sua verdade interiormente, não é preciso compreendê-las. Só que esse credo é interessante apenas como confissão; como imperativo, não possui qualquer obrigatoriedade. Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo? Em caso negativo, por que justamente nesse? Não há instância alguma acima da razão. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma vivência interior que a ateste, o que fazer com as muitas pessoas que não têm semelhante vivência rara? Pode-se exigir de todos os homens que empreguem o dom da razão que possuem, mas não se pode erigir uma obrigação que seja válida para todos sobre um motivo que existe apenas para bem poucos. Se alguém obteve a convicção inabalável na verdade real das doutrinas religiosas graças a um estado extático que o impressionou profundamente, que importa isso ao outro?

A segunda tentativa é a da filosofia do “como se”. Ela afirma que em nossa atividade intelectual abundam suposições cuja falta de fundamento, cujo absurdo até, reconhecemos inteiramente. São chamadas de ficções, mas, por variados motivos práticos, teríamos de nos comportar “como se” acreditássemos nelas. Tal seria o caso das doutrinas religiosas em razão de sua incomparável importância para a conservação da sociedade humana. (5) Essa argumentação não está muito longe do credo quia absurdum. Penso, porém, que a reivindicação do “como se” é de um tipo que só filósofos podem fazer. O homem que não seja influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofia nunca poderá aceitá-la; para ele, a questão está liquidada com a confissão de absurdo, de irracionalidade. Ele não pode ser obrigado, precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes, a renunciar às certezas que costuma exigir em todas as suas atividades habituais. Recordo-me de um de meus filhos, que se destacou precocemente por uma insistência especial na objetividade. Quando se contava uma história às crianças, que a escutavam atentamente, ele vinha e perguntava: ” “Essa história é verdadeira?”. Depois que se respondia que não, ele se afastava com uma cara de desdém. É de se esperar que a humanidade logo passe a se comportar da mesma maneira em relação aos contos da carochinha religiosos, a despeito da intercessão do “como se”.

Atualmente, porém, ela ainda se comporta de modo bem diferente, e, em épocas passadas, apesar de sua indiscutível carência de comprovação, as ideias religiosas exerceram sobre ela a mais forte influência. Esse é um novo problema psicológico. Deve-se perguntar: em que consiste a força interna dessas doutrinas, a que circunstâncias devem sua eficácia, que é independente de reconhecimento racional?

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4. “Creio porque é absurdo.” famosa expressão atribuída a Tertuliano (c. 150-c. 220), teólogo romano. (N.T.)

5. Espero não cometer nenhuma injustiça se atribuo ao filósofo do “como se” uma perspectiva que também não é alheia a outros pensadores. Cf. Hans Vaihinger (A filosofia do como se, 8. ed., 1922, p. 68): “Incluímos no âmbito das ficções não apenas operações teóricas, indiferentes, mas também formações conceituais que foram imaginadas pelos homens mais nobres, às quais o coração da parte mais nobre da humanidade está afeito e que esta não se deixa arrebatar. E de modo algum queremos fazer isso – como ficção prática, deixamos que tudo isso subsista, mas como verdade teórica, perece”

Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo?