FREUD, S., 1856-1939. O futuro de uma ilusão. Tradução R. Zwick. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2018. 137p.
Retomemos o fio da investigação: qual é, pois, o significado das ideias religiosas? Como podemos classificá-las? Não é fácil, de modo algum, responder a essa questão imediatamente. Depois de rejeitar diversas formulações, nos deteremos nesta: as ideias religiosas são proposições, são enunciados acerca de fatos e circunstâncias da realidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivíduo não encontrou por conta própria, e que se reivindicam que se creia nelas. Visto que informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração. Quem delas nada sabe é deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentos pode se considerar muito enriquecido.
Obviamente, há muitas dessas proposições sobre as coisas mais variadas deste mundo. Cada lição escolar está cheia delas. Tomemos a de geografia. Lá ouviremos que Constança se localiza junto ao lago do mesmo nome. Uma canção de estudantes acrescenta: “E quem não crer, que vá lá ver”. Estive lá, casualmente, e posso confirmar que a bela cidade se encontra às margens de um vasto lago que todos os habitantes dos arredores chamam de Lago de Constança. Agora estou plenamente convencido da veracidade dessa afirmação geográfica. Isso me faz lembrar de uma outra experiência, bastante notável. Eu era um homem maduro quando pisei pela primeira vez a colina da acrópole de Atenas, em meio às ruínas do templo e com vista para o mar azul. À minha felicidade se misturava um sentimento de espanto, que me sugeriu a seguinte interpretação: “Então é realmente como aprendemos na escola! Como deve ter sido débil e superficial a crença que adquiri na verdade real do que foi ouvido naquele tempo se hoje posso ficar tão espantado!” Mas não quero dar ênfase excessiva à significação dessa experiência; há ainda uma outra explicação possível para o meu espanto, que não me ocorreu na ocasião, cuja natureza é inteiramente subjetiva e está ligada à singularidade do lugar.
Todas essas proposições, portanto, reivindicam a crença em seus conteúdos, mas não sem fundamentar sua pretensão. Elas se apresentam como o resultado abreviado de um longo processo de pensamento baseado na observação e, certamente, também na dedução; e a quem tiver o intuito de refazer esse processo por conta própria, em vez de aceitar seu resultado, elas mostram o caminho. Quando a proposição não é evidente como no caso de afirmações geográficas, sempre se acrescenta também a proveniência do conhecimento que ela anuncia. Por exemplo, o conhecimento de que a Terra tem a forma de uma esfera; como provas disso, são aduzidos o experimento de Foucault com o pêndulo, o comportamento do horizonte e a possibilidade de circum-navegá-la. Visto que é impraticável, conforme reconhecem todos os interessados, enviar todos os escolares em viagens de circum-navegação, a escola se contenta em deixar que seus ensinamentos sejam aceitos de “boa-fé”, sabendo, porém, que o caminho para a convicção pessoal permanece aberto.
Tentemos medir as proposições religiosas com o mesmo critério. Quando perguntamos sobre o fundamento da pretensão de que se acredite nelas, recebemos três respostas que se harmonizam notavelmente mal entre si. Em primeiro lugar, merecem crédito porque nossos ancestrais já acreditavam nelas; em segundo lugar, possuímos provas que nos foram transmitidas precisamente dessa época antiga, e, em terceiro lugar, é absolutamente proibido questionar essa comprovação. No passado, esse atrevimento era punido com os mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade vê com desagrado que alguém o renove.
Esse terceiro ponto precisa despertar as nossas mais fortes reservas. A única motivação de semelhante proibição só pode ser o fato de que a sociedade conhece muito bem o caráter duvidoso da pretensão que reclama para suas doutrinas religiosas. Caso contrário, ela certamente colocaria o material necessário, com a maior boa vontade, à disposição de todo aquele que busca formar a sua própria convicção. Por isso, passamos ao exame dos dois outros argumentos com uma desconfiança difícil de apaziguar. Devemos acreditar porque nossos ancestrais acreditaram. Esses nossos antepassados, porém, eram muito mais ignorantes do que nós; eles acreditavam em coisas que hoje nos são impossíveis de aceitar. Manifesta-se a possibilidade de que as doutrinas religiosas também possam ser desse tipo. As provas que nos deixaram estão registradas em escritos que trazem, eles próprios, todos os sinais de serem indignos de confiança. São contraditórios, retocados e falsificados; quando relatam comprovações efetivas, eles próprios carecem de comprovação. Não ajuda muito afirmar que suas formulações, ou apenas seus conteúdos, têm origem na revelação divina, pois essa afirmação mesma já é uma parte daquelas doutrinas cuja credibilidade deve ser investigada, e nenhuma proposição pode provar a si mesma.
Chegamos assim ao estranho resultado de que precisamente as comunicações de nosso patrimônio cultural que poderiam ter para nós o maior dos significados, às quais cabe a tarefa de nos esclarecer os enigmas do mundo e nos reconciliar com os sofrimentos da vida – de que precisamente elas possuem a mais fraca comprovação. Não poderíamos nos decidir a aceitar um fato para nós tão indiferente quanto o de que as baleias parem seus filhotes em vez de colocar ovos se ele não fosse melhor demonstrável.
Esse estado de coisas é por só um problema psicológico bastante notável. E que ninguém acredite que as observações anteriores acerca da indemonstrabilidade das doutrinas religiosas contenham algo novo. Ela foi percebida em todas as épocas, e certamente também pelos antepassados que legaram tal herança. É possível que muitos deles tenham nutrido as mesmas dúvidas que nós, porém se encontravam sob uma pressão forte demais para que ousassem expressá-las. E, desde então, um número incontável de homens se atormentou com as mesmas dúvidas, que queriam sufocar porque se julgavam obrigados a crer; muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito; muitos caracteres sofreram danos em razão dos compromissos em que buscavam uma saída.
Se todas as provas apresentadas em favor da credibilidade das proposições religiosas provêm do passado, é natural verificar se o presente, que pode ser julgado com mais acerto, também pode oferecer tais provas. Se, dessa forma, se conseguisse colocar a salvo de dúvidas mesmo que apenas uma única parte do sistema religioso, o todo ganharia extraordinariamente em credibilidade. É aqui que entra a atividade dos espíritas, que estão persuadidos da continuidade da alma individual e que pretendem nos demonstrar que essa proposição da doutrina religiosa é isenta de dúvidas. Infelizmente, não conseguem refutar o fato de as aparições e manifestações de seus espíritos serem apenas produtos de sua própria atividade psíquica. Eles evocaram os espíritos dos maiores homens, dos mais destacados pensadores, mas todas as manifestações e notícias que deles receberam foram tão tolas, tão inconsolavelmente ocas, que não se pode acreditar em outra coisa senão na capacidade dos espíritos de se adaptarem ao círculo de pessoas que os invoca.
Agora é preciso mencionar duas tentativas que dão a impressão de um empenho obstinado em fugir ao problema. Uma delas, de natureza forçada, é antiga; a outra, sutil e moderna. A primeira é o credo quia absurdum (4) do padre da Igreja. Isso significa que as doutrinas religiosas escapam às reivindicações da razão, que estão acima dela. Deve-se perceber a sua verdade interiormente, não é preciso compreendê-las. Só que esse credo é interessante apenas como confissão; como imperativo, não possui qualquer obrigatoriedade. Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo? Em caso negativo, por que justamente nesse? Não há instância alguma acima da razão. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma vivência interior que a ateste, o que fazer com as muitas pessoas que não têm semelhante vivência rara? Pode-se exigir de todos os homens que empreguem o dom da razão que possuem, mas não se pode erigir uma obrigação que seja válida para todos sobre um motivo que existe apenas para bem poucos. Se alguém obteve a convicção inabalável na verdade real das doutrinas religiosas graças a um estado extático que o impressionou profundamente, que importa isso ao outro?
A segunda tentativa é a da filosofia do “como se”. Ela afirma que em nossa atividade intelectual abundam suposições cuja falta de fundamento, cujo absurdo até, reconhecemos inteiramente. São chamadas de ficções, mas, por variados motivos práticos, teríamos de nos comportar “como se” acreditássemos nelas. Tal seria o caso das doutrinas religiosas em razão de sua incomparável importância para a conservação da sociedade humana. (5) Essa argumentação não está muito longe do credo quia absurdum. Penso, porém, que a reivindicação do “como se” é de um tipo que só filósofos podem fazer. O homem que não seja influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofia nunca poderá aceitá-la; para ele, a questão está liquidada com a confissão de absurdo, de irracionalidade. Ele não pode ser obrigado, precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes, a renunciar às certezas que costuma exigir em todas as suas atividades habituais. Recordo-me de um de meus filhos, que se destacou precocemente por uma insistência especial na objetividade. Quando se contava uma história às crianças, que a escutavam atentamente, ele vinha e perguntava: ” “Essa história é verdadeira?”. Depois que se respondia que não, ele se afastava com uma cara de desdém. É de se esperar que a humanidade logo passe a se comportar da mesma maneira em relação aos contos da carochinha religiosos, a despeito da intercessão do “como se”.
Atualmente, porém, ela ainda se comporta de modo bem diferente, e, em épocas passadas, apesar de sua indiscutível carência de comprovação, as ideias religiosas exerceram sobre ela a mais forte influência. Esse é um novo problema psicológico. Deve-se perguntar: em que consiste a força interna dessas doutrinas, a que circunstâncias devem sua eficácia, que é independente de reconhecimento racional?
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4. “Creio porque é absurdo.” famosa expressão atribuída a Tertuliano (c. 150-c. 220), teólogo romano. (N.T.)
5. Espero não cometer nenhuma injustiça se atribuo ao filósofo do “como se” uma perspectiva que também não é alheia a outros pensadores. Cf. Hans Vaihinger (A filosofia do como se, 8. ed., 1922, p. 68): “Incluímos no âmbito das ficções não apenas operações teóricas, indiferentes, mas também formações conceituais que foram imaginadas pelos homens mais nobres, às quais o coração da parte mais nobre da humanidade está afeito e que esta não se deixa arrebatar. E de modo algum queremos fazer isso – como ficção prática, deixamos que tudo isso subsista, mas como verdade teórica, perece”