VOLTAIRE, 1694-1778. O filósofo ignorante. Tradução C. Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 202p.
Elogio histórico da Razão pronunciado numa academia de província pelo sr. De Chambon (1774)
Erasmo fez, no século XVI, o elogio da Loucura. Ordenais-me fazer-vos o elogio da Razão. Essa Razão, com efeito, só é festejada uns duzentos anos depois de sua inimiga, não raro muito mais tarde; e há nações nas quais ela ainda não foi absolutamente vista. Era tão desconhecida entre nós no tempo dos nossos druidas que não tinh,a sequer um nome na nossa língua. César não a trouxe nem à Suíça, nem a Autun, nem a Paris, que não passava então de um povoado de pescadores, e ele próprio mal a conheceu.
Ele tinha tantas grandes qualidades que a Razão não logrou encontrar um lugar na multidão. Esse magnânimo insensato saiu do nosso país devastado para ir devastar o seu e para receber vinte e três punhaladas desfechadas por vinte e três outros ilustres furiosos que estavam longe de ter o valor dele.
O sicambro Clodvich ou Clóvis, cerca de quinhentos anos depois, veio exterminar uma parte da nossa nação e subjugar a outra. Não se ouviu falar de razão nem no seu exército nem nas nossas infelizes aldeiazinhas, a não ser da razão do mais forte.
Arrastamo-nos durante longo tempo nessa horrível e aviltante barbárie. As cruzadas não nós tiraram dela. Foi ao mesmo tempo a loucura mais universal, a mais atroz, a mais ridícula e a mais desgraçada. A abominável loucura da guerra civil e sagrada que exterminou tanta gente da língua de oc e da língua de oil¹ sucedeu a essas cruzadas longínquas. A Razão nem pensava em aparecer por lá. Então a Política reinava em Roma; tinha por ministros suas duas irmãs, a Velhacaria e a Avareza. Viam-se a Ignorância, o Fanatismo, O Furor marchar sob suas ordens na Europa; a Pobreza seguia-os por toda parte; a Razão escondia-se num poço com a Verdade, sua filha. Ninguém sabia onde ficava esse poço; e, caso se soubesse, ter-se-ia descido nele para degolar a filha e a mãe.
Depois que os turcos tomaram Constantinopla e redobraram as temíveis desgraças da Europa, dois ou três gregos², em fuga, caíram dentro desse poço, ou antes, nessa caverna, meio mortos de fadiga, de fome e medo.
A Razão recebeu-se com humanidade, deu-lhes de comer sem distinção de corpos: coisa que eles nunca tinham conhecido em Constantinopla. Receberam dela algumas instruções em pequeno número, pois a Razão não é prolixa. Elas os fez jurar que não revelariam o lugar de seu retiro. Eles partiram e chegaram, depois de muito andar, à corte de Carlos V e Francisco I.
Foram pelotiqueiros que vinham fazer demonstrações de malabarismo para entreter a ociosidade dos cortesãos e das damas nos intervalos de suas entrevistas. Os ministros dignaram-se olhar para eles nos momentos de folga que podiam ter em meio à torrente dos negócios. Foram mesmo acolhidos pelo imperador e pelo rei da França, que lançaram sobre eles um olhar de passagem, quando se dirigiam aos aposentos de suas amantes. Mas foram mais felizes nas cidadezinhas, onde encontraram bons burgueses, que tinham ainda, não sei como, uns laivos de bom senso.
Esses frágeis laivos extinguiram-se em toda a Europa entre as guerras civis que a assolaram. Duas ou três centelhas de razão não podiam iluminar o mundo no meio das tochas ardentes e das fogueiras que o fanatismo acendeu durante tantos anos. a Razão e sua filha esconderam-se mais que nunca.
Os díscípulos de seus primeiros apóstolos calaram-se, salvo alguns que foram bastante temerários para pregar a razão insensatamente e fora de tempo: isso lhes custou a vida, como a Sócrates; mas ninguém lhe prestou atenção³. Nada é tão desagradável como ser enforcado obscuramente. Ficou-se ocupado durante tanto tempo com as noites de São Bartolomeu, os massacres da Irlanda, os cadafalsos da Hungria, os assassínios dos reis, que não se tinha nem suficiente tempo nem suficiente liberdade para pensar nos crimes miúdos e nas calamidades secretas que inundavam mundo de ponta a ponta.
A Razão, informada do que se passava por alguns exilados que se tinham refugiado em seu retiro, foi tocada de piedade, conquanto não passe por ser muito terna. Sua filha, que é mais ousada do que ela, encorajou-a a ver o mundo e a tratar de curá-lo. Elas apareceram, falaram; mas encontraram tantos interesseiros maus para contradizê-las, tantos imbecis a serviço dessa gente má, tantos indiferentes ocupados unicamente consigo mesmos e com o momento presente, que não se preocupavam nem com elas nem com seus inimigos, que acabaram regressando sabiamente ao seu asilo.
Entretanto algumas sementes dos frutos que elas trazem sempre consigo, e que haviam espalhado, germinaram sobre a terra e mesmo sem apodrecer (4).
Enfim, há algum tempo, lhes deu vontade e ir a Roma em peregrinação, disfarçadas e ocultando o seu nome por medo de Inquisição. Ali chegando, dirigiram-se ao cozinheiro do papa Ganganelli, Clemente XIV. Sabiam que era em Roma o cozinheiro menos ocupado. Pode-se dizer mesmo que ele era, depois dos vossos confessores, senhores, o homem mais desocupado da sua profissão.
Esse sujeito, depois de haver dado às duas peregrinas um jantar quase tão frugal quanto o do papa, conduziu-as perante Sua Santidade, a quem encontraram lendo os Pensamentos de Marco Aurélio. O papa reconheceu os disfarces, beijou-as cordialmente, não obstante a etiqueta. “Senhoras”, disse, “se eu tivesse podido imaginar que estivésseis sobre a terra, ter-vos-ia feito a primeira visita”;
Terminados os cumprimentos, falou-se de negócios. Já no dia seguinte Ganganelli aboliu a bula In coena Domini, um dos maiores monumentos da loucura humana, que durante tanto tempo havia ultrajado todos os potentados (5). Dois dias depois, tomou a resolução de destruir a companhia (6) de Garrasse, de Guignard, de Garnet, de Busembaum, de malagrida, de Paulian, de Patouillet, de Nonotte; e a Europa bateu palmas. Logo depois reduziu os impostos, de que o povo se queixava. Incentivou a agricultura e todas as artes; fez-se amar por todos os que passavam por inimigos de sua praça. Dir-se-ia então em Roma que no mundo havia uma só nação e uma única lei. […]
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¹ Isto é, tanta gente do sul e do norte do Loire.
² Os Lascaris.
³ Étienne Dolet, Vanini etc.
4. São Paulo, Coríntios XV, 36; São João XII, 24; L’ Homme aux quarante écus, in Voltaire, Oeuvres complètes, op. cit., tomo XXI.
5. Todos os anos, na Quinta-Feira, publicava-se em Roma a bula In coena Domini (ver o artigo BULLE do Dictionnaire philosophique, II, in Voltaire, Oeuvres complètes, op. cit., tomo XVIII, p. 42). Clemente XIV suprimiu essa publicação.
5.