A razão não é prolixa

VOLTAIRE, 1694-1778. O filósofo ignorante. Tradução C. Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 202p.

Elogio histórico da Razão pronunciado numa academia de província pelo sr. De Chambon (1774)

Erasmo fez, no século XVI, o elogio da Loucura. Ordenais-me fazer-vos o elogio da Razão. Essa Razão, com efeito, só é festejada uns duzentos anos depois de sua inimiga, não raro muito mais tarde; e há nações nas quais ela ainda não foi absolutamente vista. Era tão desconhecida entre nós no tempo dos nossos druidas que não tinh,a sequer um nome na nossa língua. César não a trouxe nem à Suíça, nem a Autun, nem a Paris, que não passava então de um povoado de pescadores, e ele próprio mal a conheceu.

Ele tinha tantas grandes qualidades que a Razão não logrou encontrar um lugar na multidão. Esse magnânimo insensato saiu do nosso país devastado para ir devastar o seu e para receber vinte e três punhaladas desfechadas por vinte e três outros ilustres furiosos que estavam longe de ter o valor dele.

O sicambro Clodvich ou Clóvis, cerca de quinhentos anos depois, veio exterminar uma parte da nossa nação e subjugar a outra. Não se ouviu falar de razão nem no seu exército nem nas nossas infelizes aldeiazinhas, a não ser da razão do mais forte.

Arrastamo-nos durante longo tempo nessa horrível e aviltante barbárie. As cruzadas não nós tiraram dela. Foi ao mesmo tempo a loucura mais universal, a mais atroz, a mais ridícula e a mais desgraçada. A abominável loucura da guerra civil e sagrada que exterminou tanta gente da língua de oc e da língua de oil¹ sucedeu a essas cruzadas longínquas. A Razão nem pensava em aparecer por lá. Então a Política reinava em Roma; tinha por ministros suas duas irmãs, a Velhacaria e a Avareza. Viam-se a Ignorância, o Fanatismo, O Furor marchar sob suas ordens na Europa; a Pobreza seguia-os por toda parte; a Razão escondia-se num poço com a Verdade, sua filha. Ninguém sabia onde ficava esse poço; e, caso se soubesse, ter-se-ia descido nele para degolar a filha e a mãe.

Depois que os turcos tomaram Constantinopla e redobraram as temíveis desgraças da Europa, dois ou três gregos², em fuga, caíram dentro desse poço, ou antes, nessa caverna, meio mortos de fadiga, de fome e medo.

A Razão recebeu-se com humanidade, deu-lhes de comer sem distinção de corpos: coisa que eles nunca tinham conhecido em Constantinopla. Receberam dela algumas instruções em pequeno número, pois a Razão não é prolixa. Elas os fez jurar que não revelariam o lugar de seu retiro. Eles partiram e chegaram, depois de muito andar, à corte de Carlos V e Francisco I.

Foram pelotiqueiros que vinham fazer demonstrações de malabarismo para entreter a ociosidade dos cortesãos e das damas nos intervalos de suas entrevistas. Os ministros dignaram-se olhar para eles nos momentos de folga que podiam ter em meio à torrente dos negócios. Foram mesmo acolhidos pelo imperador e pelo rei da França, que lançaram sobre eles um olhar de passagem, quando se dirigiam aos aposentos de suas amantes. Mas foram mais felizes nas cidadezinhas, onde encontraram bons burgueses, que tinham ainda, não sei como, uns laivos de bom senso.

Esses frágeis laivos extinguiram-se em toda a Europa entre as guerras civis que a assolaram. Duas ou três centelhas de razão não podiam iluminar o mundo no meio das tochas ardentes e das fogueiras que o fanatismo acendeu durante tantos anos. a Razão e sua filha esconderam-se mais que nunca.

Os díscípulos de seus primeiros apóstolos calaram-se, salvo alguns que foram bastante temerários para pregar a razão insensatamente e fora de tempo: isso lhes custou a vida, como a Sócrates; mas ninguém lhe prestou atenção³. Nada é tão desagradável como ser enforcado obscuramente. Ficou-se ocupado durante tanto tempo com as noites de São Bartolomeu, os massacres da Irlanda, os cadafalsos da Hungria, os assassínios dos reis, que não se tinha nem suficiente tempo nem suficiente liberdade para pensar nos crimes miúdos e nas calamidades secretas que inundavam mundo de ponta a ponta.

A Razão, informada do que se passava por alguns exilados que se tinham refugiado em seu retiro, foi tocada de piedade, conquanto não passe por ser muito terna. Sua filha, que é mais ousada do que ela, encorajou-a a ver o mundo e a tratar de curá-lo. Elas apareceram, falaram; mas encontraram tantos interesseiros maus para contradizê-las, tantos imbecis a serviço dessa gente má, tantos indiferentes ocupados unicamente consigo mesmos e com o momento presente, que não se preocupavam nem com elas nem com seus inimigos, que acabaram regressando sabiamente ao seu asilo.

Entretanto algumas sementes dos frutos que elas trazem sempre consigo, e que haviam espalhado, germinaram sobre a terra e mesmo sem apodrecer (4).

Enfim, há algum tempo, lhes deu vontade e ir a Roma em peregrinação, disfarçadas e ocultando o seu nome por medo de Inquisição. Ali chegando, dirigiram-se ao cozinheiro do papa Ganganelli, Clemente XIV. Sabiam que era em Roma o cozinheiro menos ocupado. Pode-se dizer mesmo que ele era, depois dos vossos confessores, senhores, o homem mais desocupado da sua profissão.

Esse sujeito, depois de haver dado às duas peregrinas um jantar quase tão frugal quanto o do papa, conduziu-as perante Sua Santidade, a quem encontraram lendo os Pensamentos de Marco Aurélio. O papa reconheceu os disfarces, beijou-as cordialmente, não obstante a etiqueta. “Senhoras”, disse, “se eu tivesse podido imaginar que estivésseis sobre a terra, ter-vos-ia feito a primeira visita”;

Terminados os cumprimentos, falou-se de negócios. Já no dia seguinte Ganganelli aboliu a bula In coena Domini, um dos maiores monumentos da loucura humana, que durante tanto tempo havia ultrajado todos os potentados (5). Dois dias depois, tomou a resolução de destruir a companhia (6) de Garrasse, de Guignard, de Garnet, de Busembaum, de malagrida, de Paulian, de Patouillet, de Nonotte; e a Europa bateu palmas. Logo depois reduziu os impostos, de que o povo se queixava. Incentivou a agricultura e todas as artes; fez-se amar por todos os que passavam por inimigos de sua praça. Dir-se-ia então em Roma que no mundo havia uma só nação e uma única lei. […]

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¹ Isto é, tanta gente do sul e do norte do Loire.

² Os Lascaris.

³ Étienne Dolet, Vanini etc.

4. São Paulo, Coríntios XV, 36; São João XII, 24; L’ Homme aux quarante écus, in Voltaire, Oeuvres complètes, op. cit., tomo XXI.

5. Todos os anos, na Quinta-Feira, publicava-se em Roma a bula In coena Domini (ver o artigo BULLE do Dictionnaire philosophique, II, in Voltaire, Oeuvres complètes, op. cit., tomo XVIII, p. 42). Clemente XIV suprimiu essa publicação.

5.

A razão não é prolixa

Sonhar é pensar?

FREUD, S., 1856-1939. Sur le rêve. Traduit de l’allemand par C Heim. Paris: Folioplus, 2007. 180p.

A transformação dos pensamentos latentes do sonho em conteúdo manifesto merece nossa plena atenção. Ela é, efetivamente, o primeiro exemplo conhecido da transposição de um material psíquico passando de um modo de expressão que nos é imediatamente compreensível à outro, o que só podemos alcançar com ajuda de esforços bem direcionados, embora porém devamos reconhecê-la como uma operação da nossa atividade psíquica. Levando em conta a relação entre conteúdo latente e manifesto, os sonhos podem dividir-se em três categorias. Podemos primeiramente distinguir os sonhos que são sensatos e ao mesmo tempo compreensíveis, isto é, são suscetíveis de deixar-se integrar à nossa vida psíquica sem nos atingir. Existe muitos sonhos deste gênero; eles são os mais frequentemente breves e são lembrados, em geral, como pouco dignos de atenção, porque carecem de algo que nos perturbe. O fato de ocorrerem é além disso, um forte argumento contra a teoria da origem do sonho como uma atividade isolada de grupos específicos e células cerebrais; carecem de todas as características de atividade psíquica degradada ou fragmentada e, no entanto, nunca fazemos objeções ao seu caráter onírico e não os confundimos com os produtos do estado de vigília. Um segundo grupo é constituído por sonhos que, são coerentes e de sentidos claros, produzem um efeito desconcertante, porque nós não sabemos como acomodá-los na nossa vida psíquica. É o que acontece quando sonhamos, por exemplo, que um parente próximo faleceu de peste, quando nós não temos nenhuma razão de imaginar, temer ou supor um tal acontecimento e que no deixa surpreso: como eu cheguei a tal ideia? O terceiro grupo, enfim, apresenta os sonhos que não tem sentido e inteligibilidade, que são incoerentes, confusos e absurdos. A grande maioria dos produtos de nossa atividade onírica apresenta essas características, e estão na base da baixa estima pelos sonhos e da teoria médica sobre a redução da atividade psíquica. Nas composições oníricas de uma certa grandeza e complexidade, notadamente, é raro que os sinais controversos mais evidentes estejam faltando.

A oposição entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente não tem aparentemente significado senão para os sonhos da segunda categoria, e mais ainda para aqueles do terceiro grupo. É aqui que reencontram-se os enigmas que não desaparecem até que o sonho seja substituído pelo conteúdo latente do pensamento, e é em relação a um exemplo desse tipo, de um sonho confuso e ininteligível, que empreendemos a análise que precede. Entretanto, contra a nossa expectativa, encontramos motivos que nos impediriam de tomar conhecimento dos pensamentos latentes do sonho, e a repetição da mesma experiência poderia nos levar a supor que existe uma correlação íntima regida por uma lei que liga o caráter ininteligível e confuso às dificuldades que impedem a comunicação dos pensamentos do sonho. Antes de explorar a natureza dessa correlação, começaremos dirigindo nosso interesse para os sonhos mais facilmente inteligíveis da primeira categoria, nos quais o conteúdo manifesto e latente coincidem, como se tentassem economizar o trabalho do sonho.

O exame deles é recomendado ainda por outro ponto de vista. Os sonhos das crianças são efetivamente deste tipo, sensatos e claros. A propósito, um novo argumento surgiu contra a não aceitação de que o sonho é uma atividade cerebral dissociado do estado de vigília relacionado à vida adulta e não poderia ser aplicado às crianças. Temos, portanto, o direito de crer que a explicação dos processos psíquicos infantis, seriam, significantemente, simplificados como uma preparação para a vida adulta.

Citarei alguns exemplos de sonhos infantis os quais eu tive conhecimento. Uma criança com um ano e sete meses permaneceu um dia em jejum porque passou mal pela manhã, ao comer morangos, e vomitou; segunda sua babá, na noite posterior à dieta, dormindo, começou a pronunciar o seu nome e acrescentou as palavras “morangos, groselhas, omelete e mingau.” Ela sonho que a partir daquele dia iria alimentar-se com estes produtos para sempre. Uma menina de três anos e meio, fez durante um dia, um passeio num lago; para ela a aventura durou pouco tempo então se pôs a chorar assim que desceu da embarcação. No outro dia pela manhã, conta que durante a noite ela continuou o passeio. […]

O elemento comum desses sonhos infantis salta aos olhos. Ele acompanha todos os desejos que foram postos em ação mas que foram interrompidos: as realizações de desejos simples e sem véu. […]

Mesmo quando o conteúdo dos sonhos infantis se tornam mais complexo e mais sutil, continua sendo fácil perceber que representam a realização de um desejo. Um menino de oito anos sonha que encontrou-se com Aquiles numa charrete que transportava Diomedes¹. Pode-se provar que no dia anterior ele leu legendas de heróis da Grécia; constata-se que tomou esses heróis como modelos e lamentou não viver naquele tempo.

Esses sonhos faz-nos perceber uma segunda característica dos sonhos infantis, sua correlação com a vida diurna. Os desejos que se realizam durante o dia, em regra geral, anterior ao evento são marcados no pensamento de vigília, com uma intensa afetividade. O que é sem importância e indiferente para a criança não seria bem recebido no conteúdo do sonho. […]

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1 Guerreiro famoso da Ilíada, de Homero, que conta a saga de Troia.

Sonhar é pensar?

Os homens agem mal não porque seus desejos são fortes, e sim porque suas consciências são fracas: os poderes mentais e morais, tal como os músculos, só se aperfeiçoam com o uso*

MILL, J. S. , 1806-1873. Sobre a liberdade. Tradução D. Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2016. 176p.

Mais, por menos que as pessoas estejam acostumadas a uma doutrina como a de Von Humboldt, e por surpreendente que lhes possa parecer que se atribua um valor tão elevado à individualidade, ainda assim é forçoso pensar que só se pode tratar de uma questão de grau. Ninguém pensa que a excelência da conduta consista em que as pessoas não façam absolutamente nada a não ser copiarem umas às outras. Ninguém afirmaria que as pessoas em seu modo de vida e na condução de seus interesses, não devem colocar absolutamente qualquer marca de seu julgamento ou de seu caráter individual. Por outro lado, seria absurdo pretender que as pessoas devam viver como se não se conhecessem absolutamente nada no mundo antes de nascer; como se a experiência ainda não tivesse feito para mostrar que um determinado modo de vida ou de conduta é preferível a outro. Ninguém nega que as pessoas devam receber ensino e formação na juventude a fim de conhecer e se beneficiar dos resultados comprovados da experiência humana. Mas o privilégio e a condição própria de um ser humano, chegado à maturidade de suas faculdades, é usar e interpretar a experiência à sua própria maneira. Cabe a ele descobrir qual parte da experiência acumulada nos anais se aplica a suas circunstâncias e a seu caráter. As tradições e os costumes de outras pessoas, em cada medida, dão prova do que a experiência ensinou a elas; é uma prova presumida e, como tal, tem direito a ser examinada; mas, em primeiro lugar, a experiência delas pode ser demasiada restrita, ou talvez não a tenham interpretado corretamente. Em segundo lugar, a interpretação que elas fazem de sua experiência pode ser correta, mas incompatível com ele. Os costumes são criados para circunstâncias costumeiras e caráteres costumeiros; as circunstâncias ou o caráter dele podem ser não costumeiros. Em terceiro lugar, mesmo que os costumes possam ser bons como costume, meramente enquanto costume, não educa nem desenvolve nele qualquer qualidade que constitui o dote próprio de um ser humano. As faculdades humanas de percepção, julgamento, discernimento, atividade mental e mesmo preferência moral só são exercidas mediante uma escolha. Quem faz alguma coisa por ser esse o costume não faz uma escolha. Não ganha qualquer prática em discernir ou desejar o que é melhor. Os poderes mentais e morais, tal como a força dos músculos, só se aperfeiçoam com o uso. Não se chamam as faculdades a qualquer exercício quando se faz alguma coisa somente porque outros a fazem, ou quando se acredita em alguma coisa apenas porque outros acreditam nela. Se as bases de uma opinião não são conclusivas para a razão da própria pessoa, mas mesmo assim ela a adotar, sua razão não se fortalecerá, mas mais provavelmente se debilitará: e se o que a induz a agir não é consentâneo com seu caráter e seus sentimentos (quando não envolvem a afeição ou os direitos de terceiros), muito contribui para lhe tornar o caráter e os sentimentos inertes e apáticos, em vez de ativos e vigorosos.

Aquele que permite que o mundo, ou sua parte do mundo, escolha para si o seu projeto de vida não precisa de qualquer outra faculdade a não ser a da imitação, como os símios. Aquele que escolhe seu projeto por si mesmo emprega todas as suas faculdades. Precisa usar a observação para ver, o raciocínio e o julgamento para antever, a atividade para reunir materiais para a decisão, o discernimento para decidir e, depois de decidir, a firmeza e auto controle para manter a decisão deliberada que tomou. […] (Continua)

* Continuação de: Da individualidade como um dos elementos do bem-estar.

Os homens agem mal não porque seus desejos são fortes, e sim porque suas consciências são fracas: os poderes mentais e morais, tal como os músculos, só se aperfeiçoam com o uso*

O ser humano é uma criatura animal de inequívoca disposição bissexual. *

FREUD, S. 1856-1930. o mal-estar na cultura. Tradução R. Zwick. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2015. 188p.

O amor genital leva à formação de novas famílias, e de meta inibida, a “amizades” que se tornam culturalmente importantes porque escapam a algumas limitações do amor genital – por exemplo à sua exclusividade. mas a relação do amor com a cultura perde o seu caráter inequívoco no decorrer do desenvolvimento. Por um lado, o amor se opõe aos interesses da cultura; por outro , esta ameaça o amor com sensíveis limitações.

Esta discórdia parece inevitável; sua razão não é de imediato reconhecível. Ela se expressa, de início, como um conflito entre a família e a comunidade maior a que o indivíduo pertence. Já descobrimos que um dos principais empenhos da cultura é aglomerar os seres humanos em grandes unidades. A família, porém, não quer largar o indivíduo. Quanto mais estreita a coesão dos membros da família, tanto mais eles tendem a se isolar dos outros, tanto mais difícil se torna para eles a entrada em esferas maiores da vida. A forma de convivência filogeneticamente mais antiga, existente apenas na infância, se defende contra a substituição pela forma cultural de convivência, adquirida posteriormente. O desligamento da família se torna para cada jovem uma tarefa em cuja solução a sociedade frequentemente o apoia por meio de ritos de puberdade e de iniciação. Fica-se com a impressão de que essas dificuldades ligadas a todo desenvolvimento psíquico, e inclusive, no fundo, a todo desenvolvimento orgânico.

Além disso, as mesmas mulheres que, com as exigências de seu amor, de início assentaram os fundamentos da cultura, logo se opõem ao seu curso e passam a exercer uma influência retardadora e bloqueadora. As mulheres representam os interesses da família e da vida sexual; o trabalho da cultura se tornou sempre mais um assunto de homens, coloca-lhes tarefas sempre mais pesadas, força-os a sublimações dos impulsos de que as mulheres são pouco capazes. Visto que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica, precisa executar suas tarefas através de uma divisão apropriada da libido. Aquilo que emprega para fins culturais, ele subtrai em sua maior parte das mulheres e da vida sexual: a convivência constante com outros homens e sua dependência das relações com eles chegam inclusive a afastá-lo de suas tarefas de marido e de pai. Desse modo, a mulher se vê relegada ao segundo plano pelas exigências da cultura e entre numa relação hostil com esta.

Da parte da cultura, a tendência de limitar a vida sexual não é menos nítida que a tendência de ampliar o âmbito cultural. Já a primeira fase da cultura, a do totemismo, traz consigo a proibição da escolha incestuosa do objeto talvez a mais radical mutilação que a vida amorosa humana experimentou ao longo das épocas. Através de tabus, leis e costumes, são estabelecidas outras limitações que atingem tanto os homens como as mulheres. Nem todas as culturas vão tão longe quanto a isso; a estrutura econômica da sociedade também influencia a medida da liberdade sexual restante. Já sabemos que neste ponto a cultura obedece à coação da necessidade econômica, visto que ela precisa subtrair à vida sexual uma grande quantidade de energia psíquica que ela mesma trata de gastar. Nisso a cultura se comporta em relação à sexualidade do mesmo modo que um grupo étnico ou uma camada da população que submeteu outra à sua exploração. O medo da rebelião dos oprimidos leva à adoção de rigorosas medidas preventivas. Nossa cultura europeia ocidental exibe um ponto culminante desse desenvolvimento. Do ponto de vista psicológico, é inteiramente justificado que ela comece com a proibição das expressões da vida sexual infantil, pois a restrição dos apetites sexuais do adulto não tem qualquer perspectiva de êxito se não for preparada já na infância. Só que não se deixa justificar de modo algum que a sociedade aculturada tenha ido tão longe a ponto de também negar esses fenômenos facilmente demonstráveis, que até saltam aos olhos. A escolha objetal do indivíduo sexualmente maduro é limitada ao sexo oposto, e a maioria das satisfações extragenitais é proibida como perversão. A exigência expressa nessas proibições, a de uma vida sexual idêntica para todos, desconsidera as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos, priva um número considerável deles do gozo sexual e se torna assim fonte de grave injustiça. O êxito dessas medidas restritivas poderia ser o de direcionar, sem perdas, todo o interesse sexual daqueles que são normais, que não sofrem de nenhum impedimento constitucional, para os canais que ficaram abertos. Mas aquilo que não é banido, o amor genital heterossexual, continua sendo afetado através das limitações representadas pela legalidade e pela monogamia. A cultura atual deixa claro que apenas permitirá relações sexuais sobre a base de um compromisso único, indissolúvel, entre um homem e uma mulher, que não aprecia a sexualidade como fonte independente de prazer e que apenas está disposta a tolerá-la como fonte até agora insubstituível para a reprodução da espécie.

Isso é um extremo, obviamente. É sabido que se mostrou irrealizável, mesmo por curtos períodos. Somente os fracotes se submeteram a um roubo tão considerável de sua liberdade sexual; naturezas mais fortes o fizeram apenas sob uma condição compensatória da qual poderemos falar mais adiante. A sociedade aculturada a aceitar em silêncio muitas transgressões que, de com suas regras, deveria ter perseguido. Mas não devemos nos enganar noutro sentido e supor que semelhante atitude cultural seja inofensiva por não alcançar todos os seus objetivos. A vida sexual do homem aculturado está seriamente afetada; às vezes, dá a impressão de ser uma função que se encontra em processo involutivo, tal como parecem estar nossos dentes e cabelos na condição de órgãos. Provavelmente temos o direito de supor que sua importância como fonte de sensações de felicidade e, portanto, para a realização da meta de nossas vidas, diminuiu de maneira sensível. (24)

Às vezes acreditamos perceber que não é apenas a pressão da cultura, mas algo na essência da própria função que nos nega a satisfação completa e nos impele para outros caminhos. Pode ser um erro; é difícil decidir. (25)

* Conclusão do texto postado com o título: A fundação da família esteve ligada ao fato de que a necessidade de satisfação genital […] se alojou no indivíduo como um inquilino permanente.

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24. Entre as obras do sutil escritor inglês John Galsworthy, que hoje goza de reconhecimento universal, cedo apreciei uma pequena história intitulada “A macieira”. Ela mostra de maneira penetrante como não há mais espaço para o amor simples e natural de duas pessoas na vida do homem aculturado de hoje.

25. Algumas observações para apoiar a suposição que expressamos acima: também o ser humano é uma criatura animal de inequívoca disposição bissexual. O indivíduo corresponde a uma fusão de duas metades simétricas, das quais, segundo a opinião de alguns pesquisadores, uma delas é inteiramente masculina, e a outra, feminina. Também é possível que cada metade fosse originalmente hermafrodita. A sexualidade é um fato biológico que, embora de extraordinária significação para a vida psíquica, é difícil de apreender psicologicamente. Estamos habituados a dizer: cada pessoa apresenta moções do impulso, necessidades e atributos masculinos e femininos, mas o caráter do masculino e do feminino pode ser indicado apenas pela anatomia, e não pela psicologia. Para esta, o contraste sexual se desbota no contraste da atividade e da passividade, sendo que de maneira demasiado fácil fazemos a atividade coincidir com a masculinidade e a passividade com a feminilidade, o que de modo algum é confirmado sem exceções no reino animal. A teoria da bissexualidade ainda é muito obscura, e o fato de que ainda não tenha encontrado ligação com a teoria dos impulsos é algo que temos de sentir como uma falha grave na psicanálise. Seja lá como for, se supomos como efetivo que o indivíduo quer satisfazer desejos masculinos e femininos em sua vida sexual, estamos preparados para a possibilidade de que essas exigências não serão cumpridas pelo mesmo objeto e de que se atrapalham mutuamente quando não se consegue mantê-las separadas e direcionar cada moção para uma via específica, a ela adequada. Outra dificuldade resulta no fato de a relação erótica, além de seus componentes sádicos próprios, ser frequentemente acompanhada de uma cota de franca tendência agressiva. O objeto de amor nem sempre demonstrará tanta compreensão e tolerância com essas complicações quanto aquela camponesa que se lamenta que seu marido deixou de amá-la porque faz uma semana que não a espanca mais.

Mais profundo, porém, é o alcance da suposição – que se liga ao que expomos na nota do início deste capítulo – de que, com a elevação do homem à postura ereta e a desvalorização do olfato, toda a sexualidade, e não apenas o erotismo anal, ameaçou se tornar uma vítima de recalcamento orgânico, de maneira que desde então a função sexual é acompanhada de uma relutância, cujo fundamento não pode ser encontrado em outra parte, que impede uma satisfação plena e a afasta da meta sexual, levando a sublimação e deslocamento libidinais. Sei que Bleuler (“A resistência sexual”, Anuário de investigações psicanalíticas e psicopatológicas, vol. 5, 1913) indicou certa vez a existência de semelhante atitude básica de aversão à vida sexual. O fato de que inter urinas et faeces nascimur [nascemos em meio a urina e fezes] escandaliza todos os neuróticos, e não só eles. Os genitais também produzem fortes odores que para muitas pessoas são insuportáveis e lhes tiram o prazer da relação sexual. Resultaria assim, como raiz mais profunda do recalcamento sexual que acompanha a cultura, a defesa orgânica da nova forma de vida conquistada com o andar ereto contra a antiga existência animal, um resultado da investigação científica que coincide de maneira notável com preconceitos banais ouvidos com frequência. Em todo o caso, essas são possibilidades por enquanto ainda incertas, não confirmadas pela ciência. Também não esqueçamos que, apesar da inegável desvalorização dos estímulos olfativos, há povos que, mesmo na Europa, apreciam muito os fortes odores genitais, para nós tão repulsivos, como estimulantes da sexualidade, e a eles não querem renunciar. (Vejam-se os levantamentos folclóricos da “enquete” de Iwan Bloch, “Sobre o olfato na vita sexualis“, em diversos números da Anthropophyteia de Friedrich S. Krauss.)

O ser humano é uma criatura animal de inequívoca disposição bissexual. *