O efeito libertador do conhecimento racional

ESPINOZA, B. de, 1632-1677. Ou le bonheur de comprendre et d’agir. In: DANINO, P.; OUDIN, É. Le bonheur. Paris: Eyrolles, 2010. pp. 110-111.

Vocês sabem o que querem? Nunca os torturou o medo de ser completamente inaptos para reconhecer o que é verdadeiro? (Nietzsche, postado em 19/08/19)

A tarefa é clara: trata-se de combater a paixão porque ela acarreta sofrimento e servidão, não podemos eliminar as causas exteriores, mas sempre que possível, deixar de obedecer e seguir a si mesmo. Ou, essa tarefa não terminará nem em razão de uma simples decisão, nem de uma luta da virtude contra o vício, mas através de um processo de conhecimento, que assume aqui todo o seu sentido e seu fim: se a paixão tem origem num conhecimento inadequado, confuso e parcial, é melhor tentar compreendê-la. Compreender pela razão os mecanismos do desejo e dos sentimentos no meio dos quais fantasiamos. Se, a moral ou os textos religiosos, podem apresentar-se como coercitivos, em razão da saúde, obediência às leis, a prática da caridade e da honestidade. Porém, ao invés de seguir e adotar certos comportamentos em razão de crenças ou porque são normas pré definidas pela sociedade, eu posso conhecê-las racionalmente e as compreender como úteis através das relações entre nós, como cidadãos.

Mas compreender verdadeiramente qualquer coisa, portanto, não é uma busca unicamente abstrata: é sempre e ao mesmo tempo uma modificação do nosso comportamento diante desta coisa, é sempre saber como tratá-la, como reagir diante dela.

O efeito libertador do conhecimento racional

A origem da psicanálise (2ª)

FREUD, S., 1856-1939. Cinq leçons sur la psychanalyse suivi de contribution à l’histoire du mouvement psychanalytique. Traduction de l’allemand par Y. Le Lay. Paris: Payot, 2015. 206p.

Uma coisa é o abandono, outra, a solidão... (Nietzsche, texto postado em 20/03/2018)

[…] Logo percebemos, como se por acaso, tal limpeza da alma fizesse muito mais do que remover, momentaneamente, a confusão mental que sempre ressurgia. Os sintomas mórbidos desapareceram também quando, sob hipnose, a paciente lembrou, manifestando-se emocionalmente, quando ocorreram pela primeira vez  esses sintomas. Segundo ela, “Num verão passado, época muito quente, a paciente estava com sede mas segundo ela, não conseguia beber água. Podia levar o copo à boca, mas quando tocava nos seus lábios, ela o afastava como se sofresse de hidrofobia. Durante esses poucos segundos, se encontrava evidentemente em estado de ausência. Só se alimentava com frutas, para passar a sede que a atormentava. Isso durou cerca de seis semanas, quando se lembrou, sob hipnose, da sua governanta inglesa que ela não gostava. Conta, com todos os sinais de um profundo desgosto, que um dia estava no quarto da governanta e o gatinho da senhora, um animal horrível, estava bebendo água num copo. Ela nada disse, por educação. Acabou o relato, manifestou violentamente sua raiva, permaneceu contida até então. Em seguida pede água, uma grande quantidade, e sai do estado de hipnose com o copo ainda nós lábios. O transtorno desapareceu para sempre¹”.

Paremos um instante nesta experiência. Ninguém faria um sintoma histérico desaparecer desta maneira sem não ter chegado profundamente à compreensão das causas. Que a descoberta de um fato tenha causado, no passado, tantas consequências, como a maioria desses sintomas pudesse ser eliminada de uma maneira tão simples! Breuer não fez nenhum esforço para provar o que aconteceu. Ele estudou sistematicamente a patogênese de outros sintomas mais graves. E para cada um deles, constata que os sintomas foram, por assim dizer, resquícios de experiências emocionais, que por este motivo, denominamos mais tarde como transtornos psíquicos; sua característica particular se aparentava no episódio traumático que havia provocado todos os sintomas. Segundo a análise técnica, os sintomas foram determinados durante os episódios quando formavam os resíduos da memória, e não era necessário observar neles efeitos arbitrários e enigmáticos da neurose. No entanto, ao contrário do que esperávamos, nem sempre foi um evento único que resultou num sintoma, mas na maioria das vezes, foram vários transtornos psíquicos, coincidentemente, análogos e repetitivos. Consequentemente, era necessário reproduzir cronologicamente a cadeia de lembranças patogênicas, porém na ordem inversa, da última até a primeira; impossível conhecer o primeiro transtorno, sobretudo o mais profundo, se pularmos os intermediários.

Sei que vocês, naturalmente, desejam conhecer outros sintomas histéricos não apenas o de hidrofobia desencadeado pelo aborrecimento ao ver o gatinho bebendo água num copo. Mas, para permanecer fiel ao meu programa, limitar-me-ei a poucos exemplos. Breuer relatou que os problemas visuais da paciente, se relacionavam às seguintes circunstâncias: “a jovem, com os olhos cheios de lágrimas, estava sentada perto do leito do seu pai, quando ele, repentinamente, perguntou que horas eram. As lágrimas embaçaram seus olhos que a impediu de ver claramente; ela fez um enorme esforço para enxergar e o mostrador do relógio pareceu muito grande (macropsia e estrabismo convergente); em seguida, ela tentou segurar as lágrimas afim de que o seu pai não percebesse que estava chorando¹.” Todas essas impressões patológicas, remontam à época quando ela cuidava do seu pai doente. “Uma vez, ela passa a noite, acordada, muito preocupada pois o seu pai estava com febre alta, e então entrou em contato com um cirurgião de Viena para saber como agir para baixar a febre. Sua mãe não estava em casa; Anna sentou-se à cabeceira do leito do doente, o braço direito sobre o encosto da cadeira. Ela cai num estado de sonolência e viu que uma serpente preta saia do muro, aproximava-se do pai para picá-lo. (Provavelmente, no campo, atrás da casa, existiam cobras que já haviam amedrontado a jovem e isso foi o motivo para a alucinação.) Ela queria perseguir o animal, mas ficou paralisada; o braço direito, dormente, sobre o encosto da cadeira;  e, quando ela olha para a mão, os dedos transformaram-se em pequenas cobras com cabeças de morto (as unhas). Sem dúvida, o esforço para perseguir a cobra com a mão direita paralisada,  associou-se à alucinação com o animal. Quando a cobra desapareceu, queria rezar, mas não conseguia em nenhum idioma. Não pode exprimir-se senão depois que lembrou de um poema infantil em inglês, e pode então pensar e rezar neste idioma²”. O relato desse episódio, sob hipnose, fez a contratura do braço direito desaparecer, já existia desde o início do transtorno, e, finalmente, o tratamento foi concluído com êxito.

Depois de muitos anos desta experiência, apliquei o mesmo método de pesquisa e tratamento de Breuer, e consegui chegar aos mesmos resultados. 

Mais um exemplo de transtorno psicológico, uma senhora com quase 40 anos tinha um tique, ruído estranho na língua, que ocorria a cada movimento e também sem causa aparente. A sua origem, após dois episódios diferentes sem nenhuma ligação. Um deles, quando desejou não se irritar quando não conseguiu que o seu filho dormisse. O outro, durante uma tempestade, fez um passeio de automóvel, e ficou irritada apenas porque não queria que o seu cabelo desarrumasse.

Senhoras e Senhores, caso me permitam, como se trata de um assunto tão amplo, podemos resumir tudo o que se segue em afirmar: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos de certos episódios (traumáticos). Símbolos comemorativos, verdade seja dita. Através de uma comparação faremos compreender isso. Os monumentos que embelezam grandes cidades são símbolos comemorativos do mesmo gênero. Por exemplo, em Londres, encontrarão diante da maioria das estações da cidade, uma coluna gótica, ricamente decorada: Charing Cross. No século XIII, um dos mais antigos reis Plantageneta transportou à Westminster o corpo da sua querida rainha Eleonora, e mandau erigir colunas góticas a casa estação por onde o comboio fúnebre passou. Charing Cross foi o último monumento que deveria ficar como lembrança  desta marcha fúnebre¹.  Em outra região  da cidade, não longe da London Bridge vocês verão uma coluna moderna muito alta  “The Monument”. Ele deve marcar  na memória de todos o terrível incêndio que ocorreu em1666 e destruiu parte da cidade. Esses monumentos são “símbolos”  como os sintomas histéricos. A comparação é portanto sustentável, até agora. Mas o que dizer de um cidadão de Londres que ainda para melancolicamente diante dos monumentos erigidos para reverenciar a rainha Eleonora ao invés de preocupar-se com os seus afazeres, com pressa, como exigem as condições modernas de trabalho, ou regozijar-se com a jovem e encantadora rainha que cativa o seu coração? Ou um outro que choraria diante o “monumento” erigido à destruição da cidade dos seus pais, quando há muito tempo não existem mais cinzas e hoje tem um brilho cada vez mais vibrante que antes?

Os histéricos e outros neuróticos comportam-se como os dois londrinos do nosso exemplo, inacreditavelmente. Não apenas nutrem-se de acontecimentos dolorosos do passado depois de muito tempo, mas permanecem ligados; não se livram deles e ainda negligenciam toda a realidade presente. Essa fixação da vida mental aos traumatismos patogênicos é uma das características mais importantes e, na prática, o mais significativo da neurose. Possivelmente vocês estarão pensando na paciente do dr. Breuer, e eu faço-me uma objeção que, certamente, é plausível. Todos os traumatismos da jovem provenientes da época quando cuidava do seu pai doente e seus sintomas não são marcas da lembrança que conservou da doença e da morte do pai. O fato de conservar tão vivamente a memória do falecido, um pouco tempo após a sua morte, não é nada de patológico; ao contrário, é um processo afetivo naturalmente normal. – Eu concordo: a paciente de Breuer, esse pensamento fixo nos traumatismos nada tem de extraordinário. Mas em outros casos, que tive a oportunidade de cuidar e cujas causas remontam a quinze ou dez anos atrás, vê-se que essa ligação com o passado tem uma característica nitidamente patológica. Essa ligação no caso da paciente de Breuer, teria provavelmente desenvolvida, possivelmente, se ela submeteu-se a um tratamento catártico pouco antes da experiência vivida e com o aparecimento dos sintomas.

Não falamos até aqui sobre  sintomas histéricos e suas relações com o histórico de vida dos doentes. Porém, temos ainda que considerar outras circunstâncias as quais Breuer mencionou e que nos levaram a entender o mecanismo do aparecimento da doença bem como a cura. Antes de mais nada tudo leva a crer, que a paciente de Breuer, diante de toda a sua patologia, reprimia severamente toda a sua emoção, ao invés de deixar fluir através das vias habituais – palavras e atos. Quando do pequeno incidente com o gato de sua governanta, reprime-o, transformando o episódio num desgosto desproporcional ao fato; quando estava à cabeceira da cama do  pai, sua preocupação excessiva para não deixar que ele percebesse sua angústia e sofrimento. Quando mais tarde ela reproduziu essas cenas diante do seu médico, a emoção reprimida ressurge com uma violência intensa, como se tivesse permanecido igual durante todo esse tempo. […]  Fomos assim levados a admitir que a paciente adoeceu por um processo infeccioso,  não conseguiu demonstrar o que estava sentindo e os sintomas foram reprimidos. Isso quando acontece, segue um duplo caminho. Persistem durante toda a vida psíquica do indivíduo e se transformam numa fonte de  irritabilidade permanente. Ou passam a apresentar sintomas anormais como paralisia que não são outra coisa, sintomas físicos da neurose. É o que denominamos, histeria de conversão. Na vida cotidiana uma certa quantidade da nossa energia vital é empregada na inervação corporal e produz o fenômeno que expressa  as emoções que todos nós conhecemos. A histeria de conversão não é outra coisa senão a expressão das emoções exagerada  que se manifestam por meios incomuns. Se um rio desemboca em dois canais, um deles transbordará naturalmente enquanto no outro canal o fluxo de água encontrará algum obstáculo.

Estamos na reta de chegada para o conhecimento de uma teoria puramente psicológica relacionada à histeria, teoria que nos leva primeiramente ao processo emocional. Uma segunda observação de Breuer nos faz acreditar com o determinismo dos processos mórbidos de tamanha importância para os estados da consciência ligados aos estados de consciência. A paciente de Breuer apresentava ao lado do seu estado normal, estados de espírito múltiplos: ausência, confusão, mudança de personalidade. No estado normal, ela nada sabia desses eventos patológicos e de suas relações com seus sintomas. Ela os esquecia ou não os relacionava a sua doença.  Quando era hipnotizada,   grandes esforços tiveram que ser feitos  para lembrar esses eventos, e este trabalho seria o responsável pela eliminação dos sintomas. O estudo dos fenômenos hipnóticos nos levou a compreensão estranha de que num mesmo indivíduo, existem vários agrupamentos psíquicos, independentes, e eles não se conectam um com o outro. Chama-se “dupla consciência”, podem apresentar-se espontaneamente para observação. Se, na ‘clivagem da personalidade’, a consciência permanece constantemente ligada a um dos dois estados, chama-se : estado psíquico consciente, e ao outro, inconsciente. O fenômeno conhecido sob o nome de sugestão post hipnótica, na qual uma ordem dada durante a hipnose acontece de qualquer jeito, não importa o que, ao estado normal, dá uma imagem excelente da influência que o estado consciente pode receber do inconsciente, e a partir deste modelo foi possível compreender os fenômenos observados na histeria. Breuer decidiu admitir que os sintomas histéricos seriam provocados durante os estados emocionais específicos que ele chamava hipnoides. As excitações que se produzem nos estados hipnoides desse gênero tornam-se patogênicos, porque não se encontram nas condições necessárias no resultado normal. Ele produz o sintoma, que penetra no estado normal como um corpo estranho. Por outro lado a pessoa não tem consciência da causa do seu mal. Onde há um sintoma há também amnésia, um vazio, uma falha de memória, e tenta-se preencher essa lacuna, suprime-se, assim, o sintoma.

Acredito que esta parte da minha exposição não parece muito clara. Porém sejam indulgentes. Trata-se de novas e complicadas visões e que, neste momento, seria impossível apresentar esse assunto de uma forma mais clara. A hipótese breuriana dos estados hipnoides é complicada e supérflua, e a psicanálise moderna a abandonou. Vocês saberão posteriormente o que mais se descobriu depois dos estados hipnoides. Todos têm o direito de achar que as pesquisas do dr Breuer passam a impressão de uma teoria incompleta e uma explicação insuficiente dos fatos observados. Mas teorias perfeitas não caem do céu e cuidado ao julgar um homem que, desde o início de suas observações, apresentou uma teoria sem lacunas e completa. Tal teoria não poderia ser produto de especulação e não o resultado de um estudo fora da realidade.

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¹ Sigmund Freud, Études sur l’hystérie, trad. A. Berman, 4ª éd., Paris, PUF, 1967, p. 26.

1. Ibid.

2. Ibid., p. 30.

  1. Ou a reprodução posterior de tal monumento. O nome Charing significa, segundo Dr. Jones: Querida rainha.

A origem da psicanálise (2ª)

Origem da psicanálise (1ª)

FREUD, S., 1856-1939. Cinq leçons sur la psychanalyse suivi de Contribuition à l’ histoire du mouvement psychanalytique. Traduction de l’ allemand par Y. Le Lay. Paris: Payot, 2015. 206p.

Segundo Schopenhauer, a leitura nos ensina a escrever, na medida em que ela mostra o uso que podemos fazer de nossos próprios dons naturais, pressupondo que tenhamos. Sem esses dons, não aprendemos coisa alguma com a leitura, a não ser uma forma fria e morta, de modo que não nos tornamos nada mais que imitadores banais!  (A Leitura, texto postado em 22/10/2015)

Vamos ao texto:

Senhoras e Senhores,

Sinto-me constrangido só em pensar em falar para um público sedento de conhecimento sobre o Novo Mundo. Creio que devo esta honra à associação entre meu nome e a psicanálise, portanto, minha palestra tratará da psicanálise e tentarei apresentar brevemente uma visão geral e de maneira sucinta, deste novo método terapêutico, desde a sua origem até as mais recentes descobertas.

Não é meu o mérito – se existe um – de ter mostrado ao mundo a psicanálise. Não participei das primeiras experiências. Eu era ainda estudante, envolvido com a preparação dos últimos exames, quando um médico de Viena, Dr. Josef Breuer¹, aplicou pela primeira vez esse procedimento no tratamento de uma jovem, histérica (isso aconteceu entre os anos de 1880 a 1882). Convém relatar antes de tudo a história desse mal e dos imprevistos durante o tratamento. Mas antes, ainda uma palavra. Não é necessário uma formação em medicina para acompanhar minha exposição. Nós seguimos durante um certo tempo com esses profissionais, mas, de repente, nos afastamos e seguimos Dr. Breuer de uma maneira completamente nova.

A cliente do Dr. Breuer era uma jovem de 21 anos, muito inteligente, e o problema se manifesta durante 2 anos com uma série de distúrbios físicos e mentais mais ou menos graves. Ela apresentava uma contratura muscular nos dois membros do lado direito como se estivesse anestesiada; de vez em quando, o mesmo problema aparecia nos membros do lado esquerdo; de repente, surgem distúrbios de movimento ocular e perturbações múltiplas na capacidade visual; dificuldade de virar a cabeça à direita; nervoso excessivo, falta de apetite e, durante várias semanas, impossibilidade de beber, mesmo com muita sede. Apresentou, também, alteração da função da fala, e nem compreendia, nem falava sua língua materna. Enfim, ela estava sujeita a esquecimentos, confusão mental, delírios e alteração de personalidade; essas são as alterações as quais nós iremos dirigir toda a nossa atenção.

Parece natural pensar que os sintomas tais aqueles que acabamos de enumerar revelassem um grave problema de saúde, provavelmente do cérebro, doença com pouca chance de cura e que, sem dúvida, levaria a jovem à morte. Os médicos dirão que, diante de tantos sintomas tão graves, pode-se fazer um prognóstico muito mais favorável. Quando sintomas deste tipo aparecem numa jovem cujos órgãos vitais, coração, rins etc, estão saudáveis, mas que sofreram violentos traumas emocionais, e quando esses sintomas se desenvolvem de uma maneira reincidente e incompreensível, os profissionais sentem-se seguros no diagnóstico. Eles reconhecem que não se trata de uma doença orgânica do cérebro, mas de um estado anormal e obscuro o qual os médicos gregos denominavam de histeria, estado capaz de simular um conjunto de transtornos graves, mas que não colocava a vida em perigo e por isso esperava-se uma cura completa. Não é fácil distinguir histeria de uma profunda doença orgânica. Porém, não importa saber como foi feito um diagnóstico desse tipo; observamos simplesmente que o caso da paciente de Breuer é daqueles que todo médico experiente diagnosticará como histeria. Convém informar que os sintomas da doença apareceram quando a jovem cuidava do pai que o amava muito ( durante a doença ele morreu) e que sua própria doença o impediu de cuidar da própria filha.

As informações acima esgotam o que os médicos poderiam nos ensinar sobre o caso que nos interessa. Chegou a hora de seguir sem eles. Porque não devemos imaginar que substituímos o diagnóstico de histeria pelo diagnóstico de doença cerebral orgânica. A medicina é a mais impotente nos dois diagnósticos. E quando se trata de histeria, ela nada pode fazer a não ser deixar a boa natureza agir para o recuperação total do paciente, apenas isso pode fazer¹. Se o diagnóstico de histeria afeta pouco o paciente, afeta muito o médico. Sua atitude é bem diferente em relação ao histérico do que ao orgânico. Ele não atribui a este o mesmo interesse que aquele, porque seu mal é muito menos sério, apesar das aparências. Também não devemos esquecer que o médico, durante seus estudos (por exemplo nos casos de apoplexia ou tumores) aprendeu a representar mais ou menos exatamente as causas dos sintomas orgânicos. Pelo contrário, diante de um quadro de histeria, seu conhecimento científico sobre anatomia, fisiologia e patologia o deixa em pânico. Ele desconhece o problema e diante dele torna-se incapaz. Do que você quase não gosta quando está acostumado a ter sua própria ciência em alta consideração. Os histéricos perdem o carinho do seu médico, que os considera como transgressores das leis (como um fiel era visto pelos heréticos). Eles são julgados capazes de todas as infâmias possíveis, os acusam de exagerar e simular intencionalmente os sintomas; e os punem demonstrando falta de interesse pelos seus problemas.

O Dr. Breuer, não seguiu a conduta dos colegas médicos. Apesar de que no início do tratamento ele não tenha conseguido aliviar sua paciente, não deixou de apoiá-la e demonstrou interesse pelo problema dela. Sem dúvida, sua tarefa foi facilitada pelas notáveis ​​qualidades de espírito e caráter dele, segundo testemunho da própria paciente. E a maneira compreensiva com que ele começou a observá-la logo lhe permitiu chegar aos primeiros resultados. Vimos que em seus estados de ausência, de alteração psíquica com confusão, a doente tinha o hábito de balbuciar algumas palavras que pareciam estar relacionadas a preocupações íntimas. O Dr. Breuer repetia suas palavras e, tendo colocado o paciente em uma espécie de hipnose, disse-lhe que repetisse palavra a palavra, tentando desta forma decifrar os pensamentos que a incomodavam. A moça concordou em contar a história relacionada às palavras que murmurava durante seus estados de ausência revelando sua existência. Eram recordações de uma profunda tristeza, porém com uma certa beleza – diremos sonhos diurnos – que tinham por assunto uma moça à cabeceira do leito do seu pai doente. Após relatar algumas recordações relacionadas a esse episódio, a jovem recuperou-se por algumas horas e até o dia seguinte permaneceu sem sintomas até ocorrer uma nova ausência que, do mesmo modo, suprimiu a história das recordações recém-recuperadas. Sem dúvida, a modificação psíquica manifestada durante as ausências era em consequência da excitação produzida pelas recordações de uma vida afetiva. A paciente que nesta época não falava e só compreendia o inglês, deu a este tratamento um novo nome, cura da fala (talking cure); também o nomeou, prazerosamente, limpeza de chaminés (chimney sweeping). […] (Continua )

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¹ O dr. Breuer é célebre pelos seus trabalhos sobre a respiração e fisiologia do equilíbrio.

¹ Sei que essa afirmação está desatualizada, atualmente. Claro, com o passar do tempo, as coisas mudaram, estudos e a história que narrei aqui contribuíram para esta mudança.







			
Origem da psicanálise (1ª)

Homens que têm dons do espirito e mentes abertas!

KANT, E., Vers la paix perpétuelle. Que signifie s’orienter dans la pensée? Qu’est-ce que les lumières? Et autres textes. Traduction par J.-F. Poirier et F. Proust. Paris: GF Flamarion, 1991.  206p.

[…]  Eu venero suas virtudes e amo seus sentimentos. Mas já estive pensando no que estão a fazer e o que vai resultar dos ataques a razão.  Sem dúvida, desejam que a liberdade de pensamento permaneça ao abrigo das ofensas, mas sem ela os impulsos do gênio não tardarão a acabar. Vejamos o que deverá naturalmente advir da falta dessa liberdade se tal procedimento, que vocês iniciaram, prevaleça.

A liberdade de pensar opõe-se antes de mais nada aos deveres civis. Com certeza, diz-se: a liberdade de falar ou de escrever pode ser retirada, por um poder superior, porém, jamais a liberdade de pensar. No entanto, a grandeza e precisão do nosso pensamento, de alguma forma, em consonância com o dos outros, a quem comunicaríamos os nossos e que nos comunicariam os seus pensamentos! Pode-se afirmar que esse poder exterior que subtrai dos homens a liberdade de comunicar-se, retira também a liberdade de pensar: o único tesouro que nos resta, como remédio, para todos os males no cotidiano das nossas vidas.

Em segundo lugar, a liberdade de pensar tomada também no mesmo sentido, opõe-se à pressão feita à consciência moral, quando, fora de qualquer poder exterior, cidadãos nomeiam-se tutores no que trata das coisas religiosas, e ao invés de apresentar argumentos, dedicam-se a proibir, mediante a utilização de crenças relacionadas ao angustiante temor do perigo de um auto exame, deixando, com isso, marcas nos espíritos dos tutelados.

Em terceiro lugar, quando há liberdade de pensar, a razão não se submete a outra lei senão aquela que ela mesma tem; e, o que mais acontece é a razão seguir sem nenhuma lei, imaginando ver o mais longe possível como um gênio que tem a ilusão de ultrapassar os limites das leis. Se cada um prefere não seguir sua própria consciência, submete-se a de qualquer um que lhe oferte; sem uma lei própria para guiar o pensamento, até uma grande loucura não permanece por muito tempo. Se a razão não quer seguir sua própria lei, deve submeter-se às leis que outros lhes dão; pois sem uma lei qualquer, absolutamente nada, mesmo a maior tolice não se mantém por muito tempo.

Homens que têm dons do espirito e mentes abertas!

Ser livre e começar de novo!

ARENDT, H., 1906-1975. La liberté d’être libre: les conditions et la signification de la révolution. Traduit de l’anglais par F. Bouillot. Paris: Payor, 2019. 87p. (Continua)

[…]

Permitam-me, a título de conclusão, abordar outro aspecto da liberdade que apareceu durante as revoluções e para o qual os revolucionários não estavam de maneira alguma preparados. É a ideia de que a liberdade e a experiência real de lançar um novo começo no continuum histórico devem coincidir. Deixem-me lembrar mais uma vez do novus ordo saeclorum. Essa frase enigmática tirada de Virgílio, que fala na quarta égloga do seu passado bucólico do “grande ciclo que retorna”, sob o reinado de Augusto: Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo¹ . Virgílio fala aqui de uma grande era (magnus), mas não de uma nova era (novus), e é essa diferença, num verso frequentemente citado ao longo dos séculos, que caracteriza as experiências da era moderna. Para Virgílio – desta vez na língua do século XVIII -, tratava-se de fundar Roma “novamente”, mas não fundar uma “nova Roma”. Assim, ele escapou, de maneira tipicamente romana, dos riscos de violência que surgiriam da ideia de um novo começo capaz de introduzir uma ruptura na tradição de Roma, ou seja, na transmissão da história do fundamento da cidade eterna. É certo que poder-se-ia argumentar que o novo começo, que os espectadores das primeiras revoluções pensavam estar testemunhando, era apenas o renascimento de algo muito antigo: o renascimento de um domínio político secular após séculos de cristianismo, feudalismo e absolutismo. Mas se é um nascimento ou renascimento, o que é certo no verso de Virgílio, é que foi retirado de um hino à natividade, que não profetiza o nascimento de um menino divino, mas que louva o nascimento em si, com o aparecimento de uma nova era, o grande acontecimento salvador ou “milagroso” que renova incessantemente a humanidade e em outras palavras, afirma o aspecto divino do nascimento e a convicção de que a salvação do mundo depende da eterna regeneração da espécie humana. O que trouxe os homens da Revolução de volta a esse poema, em particular, foi, na minha opinião, além da erudição, a ideia pré revolucionária de liberdade e de experiência de ser livre, coincidentemente, ou melhor, estavam intimamente relacionados com o fato de começar alguma coisa nova com, no sentido metafórica, o nascimento de uma nova era. Ser livre e começar algo novo era visto como a mesma coisa. E evidentemente, este misterioso dom humano que é a capacidade de iniciar qualquer coisa outra vez está relacionada ao fato de cada um de nós chega neste mundo como um recém-chegado por nascimento. Em outras palavras, podemos começar qualquer coisa porque somos iniciantes e então aprendizes. Desde quando temos a capacidade de agir e falar- e falar não é senão outra modo de ação – faz de nós seres políticos, já que “atuar” sempre significou começar algo que não existia antes, nascimento, a natalidade humana, que corresponde à mortalidade, é a condição ontológica sine qua non da política. Esse fato era conhecido na Antiguidade grega e romana, embora menos explicitamente. Surgiu primeiramente nas experiências de revolução e a influenciou, de uma maneira pouco explícita, o que se pode chamar o espírito revolucionário. Qualquer que seja, as revoluções em cadeia, para o bem ou para o mal, tornaram-se a marca no mundo no qual vivemos, mostram a explosão de novas iniciativas no sentido do continuum temporal e histórico. Para nós que devemos isso a uma revolução e a criação e que o segue, de um corpo político inteiramente novo no qual podemos seguir com dignidade e atuar com liberdade, seria sábio relembrar o significado de uma revolução na vida das nações. Que ela tenha sucesso com a criação de um espaço público para a liberdade, ou termine num desastre, para quem arriscou ou participou contra sua inclinação e suas expectativas, o sentido de uma revolução é a realização de uma das maiores e mais elementares potencialidades humanas, uma experiência inigualável de ser livre podendo acompanhar um novo começo, que nos deixam orgulhosos de ter aberto o mundo a um novus ordo saeclorum. […]

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  1. “Termina o tempo marcado pela Sibila./ Uma nova era, uma grande era nascerá/ A virgem voltará para nós e as leis de Saturno/ E o céu nos enviará uma nova corrida”. (Tradução de Paul Valéry; nós destacamos).




 












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Ser livre e começar de novo!

É muito fácil tomar o poder, difícil é conservar*…

ARENDT, H., 1906-1975. La liberté d”être libre. Les conditions et la signification de la révolution. Traduit de l’anglais par F. Bouillot. Paris: Payot, 2019. 87p. (Final da conclusão)

[…] Maquiavel, que recebeu o cognome “pai das revoluções”, desejou, apaixonadamente, uma nova ordem das coisas para a Itália, sem mesmo ter uma grande experiência sobre isso. Ele também acreditava que os “precursores”, quer dizer, os revolucionários teriam as maiores dificuldades quando iniciasse a tomada de poder, e menos para conservá-lo. As revoluções mostram o inverso desta afirmação – é bastante fácil tomar o poder, porém infinitamente mais difícil conservá-lo -, como Lênin, uma grande testemunha desses acontecimentos, comentou : “não há coisa mais difícil de empreender e mais incerto de acontecer do que a vitória, nem mais perigoso para fazer, do que a tomada de iniciativa para introduzir novas instituições¹.” Acredito que cada um que sabe de algum fato relacionado à história do século XX concordará com esta afirmação. Além disso, os resultados nefastos que Maquiavel temia foram os mais reais até os nossos dias, apesar de que ainda não se tem consciência do maior perigo relacionado às revoluções modernas – a pobreza. Ele mencionou isto, a partir da Revolução Francesa, quando denominou-se forças contra revolucionárias, àqueles que “aproveitaram-se das antigas instituições”, e da indiferença daqueles mesmos que poderiam tirar proveito da nova ordem, isto é, da “falta de confiança dos homens, que não tinham confiança nas coisas novas, já que eles não enxergavam como uma sólida experiência¹”. Para Maquiavel entretanto, o perigo não é devido à incapacidade de criar uma nova ordem das coisas, mas na deterioração do país devido a esta tentativa. Nisso, também, ele estava certo, porque essa fraqueza, isto é, vazio de poder, que eu falei anteriormente, pode muito bem atrair os invasores. Não que esse vazio não tenha existido antes, mas pode permanecer dissimulado durante anos até que um acontecimento decisivo gere uma crise de autoridade e uma revolução se instale e manifeste o interesse em invadir o espaço público quando ela seria vista e conhecida por todos. Além disso, vimos o perigo maior: a tentativa fracassada de criar instituições relacionadas à liberdade leve a revogação de todos os direitos e liberdades que existiam.

Precisamente porque as revoluções tratam da liberdade política de uma maneira mais real e radical – liberdade de participar das atividades públicas, liberdade de ação -, todas as outras liberdades políticas e civis são ameaçadas quando as revoluções fracassam. As revoluções modificadas como a Revolução de outubro sob o comando de Lênin ou as que fracassaram, em vários países da Europa central após a Primeira Guerra Mundial, poderiam ter como sabemos, consequências como ódio e ameaças sem precedentes. O problema é que as revoluções são raramente reversíveis, e quando acontecem jamais serão esquecidas, como dizia Kant a propósito da revolução Francesa numa época quando lá o terror reinava. Forçosamente, seria melhor evitar que as revoluções se realizassem, pois se são resultado de regimes em plena desintegração, e não “produto” de revolucionários – organizadas em seitas de natureza conspiratória ou em partidos -, impedir uma revolução, mudar a forma de governo, por sua vez, implica em efetuar uma revolução com todos os perigos que se pode prever. A queda de autoridade e de poder, que em regra geral ocorre numa rapidez surpreendente, não somente para leitores de jornais, mas também para os serviços secretos e seus especialistas que testemunham isso, não se torna uma revolução no sentido pleno do termo quando há pessoas dispostas e capazes de resgatar o poder, ou como se diz, penetrar no coração do vazio de poder. Porém isso depende de numerosos fatores e da capacidade das forças estrangeiras de compreenderem o caráter irreversível das práticas revolucionárias. Mas depende, também, antes de tudo, das qualidades subjetivas e do sucesso ou do desgaste moral e político daqueles que estão dispostos a assumir a responsabilidade do poder. Temos quase nenhuma esperança, num futuro mais próximo, num momento qualquer, que esses homens terão a mesma sabedoria prática e teórica igual aos homens que participaram da Revolução americana, que se tornaram fundadores desse país. Mas eu creio que esta pequena esperança seja apenas o que nos resta para que a liberdade no sentido político não seja novamente apagada da superfície da terra só Deus sabe em quantos séculos.

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*Maquiavel

¹Maquiavel, O Príncipe, cap. VI, in Obras, traduzidas por Christian Bec, Paris, Robert Laffont, coll. “Bouquins”, 1996, p. 123

  1. Ibid.




É muito fácil tomar o poder, difícil é conservar*…

À amizade

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Hymne à l’ámitié: Aphorismes et poèmes choisis. Traduits de l’allemand par N. Waquet. Paris: Rivages poche, 2019. 123p.

Olá, Amizade!

Minha maior esperança,

Primeiro amanhecer!

Ah, sem fim

Muitas vezes me pareceu o caminho e à noite,

Toda a vida

Sem rumo e odiada!

Quero viver duas vezes.

Agora que eu vejo nos teus olhos

A vitória e o brilho da manhã

Ó deusa querida (69)!

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69. Fragmento póstumo, 1882, 1 [106].





À amizade