FREUD, S., 1856-1939. Cinq leçons sur la psychanalyse suivi de contribution à l’histoire du mouvement psychanalytique. Traduction de l’allemand par Y. Le Lay. Paris: Payot, 2015. 206p.
Uma coisa é o abandono, outra, a solidão... (Nietzsche, texto postado em 20/03/2018)
[…] Logo percebemos, como se por acaso, tal limpeza da alma fizesse muito mais do que remover, momentaneamente, a confusão mental que sempre ressurgia. Os sintomas mórbidos desapareceram também quando, sob hipnose, a paciente lembrou, manifestando-se emocionalmente, quando ocorreram pela primeira vez esses sintomas. Segundo ela, “Num verão passado, época muito quente, a paciente estava com sede mas segundo ela, não conseguia beber água. Podia levar o copo à boca, mas quando tocava nos seus lábios, ela o afastava como se sofresse de hidrofobia. Durante esses poucos segundos, se encontrava evidentemente em estado de ausência. Só se alimentava com frutas, para passar a sede que a atormentava. Isso durou cerca de seis semanas, quando se lembrou, sob hipnose, da sua governanta inglesa que ela não gostava. Conta, com todos os sinais de um profundo desgosto, que um dia estava no quarto da governanta e o gatinho da senhora, um animal horrível, estava bebendo água num copo. Ela nada disse, por educação. Acabou o relato, manifestou violentamente sua raiva, permaneceu contida até então. Em seguida pede água, uma grande quantidade, e sai do estado de hipnose com o copo ainda nós lábios. O transtorno desapareceu para sempre¹”.
Paremos um instante nesta experiência. Ninguém faria um sintoma histérico desaparecer desta maneira sem não ter chegado profundamente à compreensão das causas. Que a descoberta de um fato tenha causado, no passado, tantas consequências, como a maioria desses sintomas pudesse ser eliminada de uma maneira tão simples! Breuer não fez nenhum esforço para provar o que aconteceu. Ele estudou sistematicamente a patogênese de outros sintomas mais graves. E para cada um deles, constata que os sintomas foram, por assim dizer, resquícios de experiências emocionais, que por este motivo, denominamos mais tarde como transtornos psíquicos; sua característica particular se aparentava no episódio traumático que havia provocado todos os sintomas. Segundo a análise técnica, os sintomas foram determinados durante os episódios quando formavam os resíduos da memória, e não era necessário observar neles efeitos arbitrários e enigmáticos da neurose. No entanto, ao contrário do que esperávamos, nem sempre foi um evento único que resultou num sintoma, mas na maioria das vezes, foram vários transtornos psíquicos, coincidentemente, análogos e repetitivos. Consequentemente, era necessário reproduzir cronologicamente a cadeia de lembranças patogênicas, porém na ordem inversa, da última até a primeira; impossível conhecer o primeiro transtorno, sobretudo o mais profundo, se pularmos os intermediários.
Sei que vocês, naturalmente, desejam conhecer outros sintomas histéricos não apenas o de hidrofobia desencadeado pelo aborrecimento ao ver o gatinho bebendo água num copo. Mas, para permanecer fiel ao meu programa, limitar-me-ei a poucos exemplos. Breuer relatou que os problemas visuais da paciente, se relacionavam às seguintes circunstâncias: “a jovem, com os olhos cheios de lágrimas, estava sentada perto do leito do seu pai, quando ele, repentinamente, perguntou que horas eram. As lágrimas embaçaram seus olhos que a impediu de ver claramente; ela fez um enorme esforço para enxergar e o mostrador do relógio pareceu muito grande (macropsia e estrabismo convergente); em seguida, ela tentou segurar as lágrimas afim de que o seu pai não percebesse que estava chorando¹.” Todas essas impressões patológicas, remontam à época quando ela cuidava do seu pai doente. “Uma vez, ela passa a noite, acordada, muito preocupada pois o seu pai estava com febre alta, e então entrou em contato com um cirurgião de Viena para saber como agir para baixar a febre. Sua mãe não estava em casa; Anna sentou-se à cabeceira do leito do doente, o braço direito sobre o encosto da cadeira. Ela cai num estado de sonolência e viu que uma serpente preta saia do muro, aproximava-se do pai para picá-lo. (Provavelmente, no campo, atrás da casa, existiam cobras que já haviam amedrontado a jovem e isso foi o motivo para a alucinação.) Ela queria perseguir o animal, mas ficou paralisada; o braço direito, dormente, sobre o encosto da cadeira; e, quando ela olha para a mão, os dedos transformaram-se em pequenas cobras com cabeças de morto (as unhas). Sem dúvida, o esforço para perseguir a cobra com a mão direita paralisada, associou-se à alucinação com o animal. Quando a cobra desapareceu, queria rezar, mas não conseguia em nenhum idioma. Não pode exprimir-se senão depois que lembrou de um poema infantil em inglês, e pode então pensar e rezar neste idioma²”. O relato desse episódio, sob hipnose, fez a contratura do braço direito desaparecer, já existia desde o início do transtorno, e, finalmente, o tratamento foi concluído com êxito.
Depois de muitos anos desta experiência, apliquei o mesmo método de pesquisa e tratamento de Breuer, e consegui chegar aos mesmos resultados.
Mais um exemplo de transtorno psicológico, uma senhora com quase 40 anos tinha um tique, ruído estranho na língua, que ocorria a cada movimento e também sem causa aparente. A sua origem, após dois episódios diferentes sem nenhuma ligação. Um deles, quando desejou não se irritar quando não conseguiu que o seu filho dormisse. O outro, durante uma tempestade, fez um passeio de automóvel, e ficou irritada apenas porque não queria que o seu cabelo desarrumasse.
Senhoras e Senhores, caso me permitam, como se trata de um assunto tão amplo, podemos resumir tudo o que se segue em afirmar: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos de certos episódios (traumáticos). Símbolos comemorativos, verdade seja dita. Através de uma comparação faremos compreender isso. Os monumentos que embelezam grandes cidades são símbolos comemorativos do mesmo gênero. Por exemplo, em Londres, encontrarão diante da maioria das estações da cidade, uma coluna gótica, ricamente decorada: Charing Cross. No século XIII, um dos mais antigos reis Plantageneta transportou à Westminster o corpo da sua querida rainha Eleonora, e mandau erigir colunas góticas a casa estação por onde o comboio fúnebre passou. Charing Cross foi o último monumento que deveria ficar como lembrança desta marcha fúnebre¹. Em outra região da cidade, não longe da London Bridge vocês verão uma coluna moderna muito alta “The Monument”. Ele deve marcar na memória de todos o terrível incêndio que ocorreu em1666 e destruiu parte da cidade. Esses monumentos são “símbolos” como os sintomas histéricos. A comparação é portanto sustentável, até agora. Mas o que dizer de um cidadão de Londres que ainda para melancolicamente diante dos monumentos erigidos para reverenciar a rainha Eleonora ao invés de preocupar-se com os seus afazeres, com pressa, como exigem as condições modernas de trabalho, ou regozijar-se com a jovem e encantadora rainha que cativa o seu coração? Ou um outro que choraria diante o “monumento” erigido à destruição da cidade dos seus pais, quando há muito tempo não existem mais cinzas e hoje tem um brilho cada vez mais vibrante que antes?
Os histéricos e outros neuróticos comportam-se como os dois londrinos do nosso exemplo, inacreditavelmente. Não apenas nutrem-se de acontecimentos dolorosos do passado depois de muito tempo, mas permanecem ligados; não se livram deles e ainda negligenciam toda a realidade presente. Essa fixação da vida mental aos traumatismos patogênicos é uma das características mais importantes e, na prática, o mais significativo da neurose. Possivelmente vocês estarão pensando na paciente do dr. Breuer, e eu faço-me uma objeção que, certamente, é plausível. Todos os traumatismos da jovem provenientes da época quando cuidava do seu pai doente e seus sintomas não são marcas da lembrança que conservou da doença e da morte do pai. O fato de conservar tão vivamente a memória do falecido, um pouco tempo após a sua morte, não é nada de patológico; ao contrário, é um processo afetivo naturalmente normal. – Eu concordo: a paciente de Breuer, esse pensamento fixo nos traumatismos nada tem de extraordinário. Mas em outros casos, que tive a oportunidade de cuidar e cujas causas remontam a quinze ou dez anos atrás, vê-se que essa ligação com o passado tem uma característica nitidamente patológica. Essa ligação no caso da paciente de Breuer, teria provavelmente desenvolvida, possivelmente, se ela submeteu-se a um tratamento catártico pouco antes da experiência vivida e com o aparecimento dos sintomas.
Não falamos até aqui sobre sintomas histéricos e suas relações com o histórico de vida dos doentes. Porém, temos ainda que considerar outras circunstâncias as quais Breuer mencionou e que nos levaram a entender o mecanismo do aparecimento da doença bem como a cura. Antes de mais nada tudo leva a crer, que a paciente de Breuer, diante de toda a sua patologia, reprimia severamente toda a sua emoção, ao invés de deixar fluir através das vias habituais – palavras e atos. Quando do pequeno incidente com o gato de sua governanta, reprime-o, transformando o episódio num desgosto desproporcional ao fato; quando estava à cabeceira da cama do pai, sua preocupação excessiva para não deixar que ele percebesse sua angústia e sofrimento. Quando mais tarde ela reproduziu essas cenas diante do seu médico, a emoção reprimida ressurge com uma violência intensa, como se tivesse permanecido igual durante todo esse tempo. […] Fomos assim levados a admitir que a paciente adoeceu por um processo infeccioso, não conseguiu demonstrar o que estava sentindo e os sintomas foram reprimidos. Isso quando acontece, segue um duplo caminho. Persistem durante toda a vida psíquica do indivíduo e se transformam numa fonte de irritabilidade permanente. Ou passam a apresentar sintomas anormais como paralisia que não são outra coisa, sintomas físicos da neurose. É o que denominamos, histeria de conversão. Na vida cotidiana uma certa quantidade da nossa energia vital é empregada na inervação corporal e produz o fenômeno que expressa as emoções que todos nós conhecemos. A histeria de conversão não é outra coisa senão a expressão das emoções exagerada que se manifestam por meios incomuns. Se um rio desemboca em dois canais, um deles transbordará naturalmente enquanto no outro canal o fluxo de água encontrará algum obstáculo.
Estamos na reta de chegada para o conhecimento de uma teoria puramente psicológica relacionada à histeria, teoria que nos leva primeiramente ao processo emocional. Uma segunda observação de Breuer nos faz acreditar com o determinismo dos processos mórbidos de tamanha importância para os estados da consciência ligados aos estados de consciência. A paciente de Breuer apresentava ao lado do seu estado normal, estados de espírito múltiplos: ausência, confusão, mudança de personalidade. No estado normal, ela nada sabia desses eventos patológicos e de suas relações com seus sintomas. Ela os esquecia ou não os relacionava a sua doença. Quando era hipnotizada, grandes esforços tiveram que ser feitos para lembrar esses eventos, e este trabalho seria o responsável pela eliminação dos sintomas. O estudo dos fenômenos hipnóticos nos levou a compreensão estranha de que num mesmo indivíduo, existem vários agrupamentos psíquicos, independentes, e eles não se conectam um com o outro. Chama-se “dupla consciência”, podem apresentar-se espontaneamente para observação. Se, na ‘clivagem da personalidade’, a consciência permanece constantemente ligada a um dos dois estados, chama-se : estado psíquico consciente, e ao outro, inconsciente. O fenômeno conhecido sob o nome de sugestão post hipnótica, na qual uma ordem dada durante a hipnose acontece de qualquer jeito, não importa o que, ao estado normal, dá uma imagem excelente da influência que o estado consciente pode receber do inconsciente, e a partir deste modelo foi possível compreender os fenômenos observados na histeria. Breuer decidiu admitir que os sintomas histéricos seriam provocados durante os estados emocionais específicos que ele chamava hipnoides. As excitações que se produzem nos estados hipnoides desse gênero tornam-se patogênicos, porque não se encontram nas condições necessárias no resultado normal. Ele produz o sintoma, que penetra no estado normal como um corpo estranho. Por outro lado a pessoa não tem consciência da causa do seu mal. Onde há um sintoma há também amnésia, um vazio, uma falha de memória, e tenta-se preencher essa lacuna, suprime-se, assim, o sintoma.
Acredito que esta parte da minha exposição não parece muito clara. Porém sejam indulgentes. Trata-se de novas e complicadas visões e que, neste momento, seria impossível apresentar esse assunto de uma forma mais clara. A hipótese breuriana dos estados hipnoides é complicada e supérflua, e a psicanálise moderna a abandonou. Vocês saberão posteriormente o que mais se descobriu depois dos estados hipnoides. Todos têm o direito de achar que as pesquisas do dr Breuer passam a impressão de uma teoria incompleta e uma explicação insuficiente dos fatos observados. Mas teorias perfeitas não caem do céu e cuidado ao julgar um homem que, desde o início de suas observações, apresentou uma teoria sem lacunas e completa. Tal teoria não poderia ser produto de especulação e não o resultado de um estudo fora da realidade.
____________________________________________
¹ Sigmund Freud, Études sur l’hystérie, trad. A. Berman, 4ª éd., Paris, PUF, 1967, p. 26.
1. Ibid.
2. Ibid., p. 30.
- Ou a reprodução posterior de tal monumento. O nome Charing significa, segundo Dr. Jones: Querida rainha.