A moralidade

DURKHEIM, É., 1858-1917. Ética e sociologia da moral. Tradução P. Castanheira. São Paulo: Martin Claret, 2016. 95p.

Do fato de os costumes sociais terem sua origem em práticas religiosas não resulta que, em última análise, os sentimentos morais derivem apenas de sentimentos religiosos. Junto com estes últimos havia, desde o inicio, tendências sociais cujas origens estavam na natureza humana. De fato, todas as pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade. O que os unia não era, como se afirma com frequência, relações de sangue, mas semelhanças de língua, hábitos e costumes. As primeiras sociedades não foram famílias, e sim agregados muito menos determinados, nos quais ainda não havia se formado nenhum laço definido de parentesco. As famílias só passaram a existir mais tarde; foram o resultado de uma diferenciação que acabou por acontecer dentro da tribo.

A afinidade entre iguais (die Neigung zu dem Genossen) é assim a forma mais antiga de inclinação social. Por rudimentar que seja, esse sentimento não é produto do egoísmo. E, em princípio, um fator autônomo de progresso moral. Mas era tão fraco, tão indefinido, que teria sido rapidamente superado pelas tendências ao egoísmo se tivesse que lutar sozinho contra elas. Encontrou, contudo, um aliado poderoso nos sentimentos religiosos. A religião, como já vimos, era uma escola natural de desprendimento e abnegação. O respeito às ordens divinas e a simpatia pelos semelhantes são as duas fontes de onde emergem todo os nossos impulsos altruístas e com eles toda a moral.

Entretanto, o egoísmo teve um papel nessa evolução: percebem-se traços dele em todas as morais primitivas. O altruísmo era tão fraco que dificilmente teria prevalecido mesmo com o auxílio da religião, se o egoísmo não tivesse colaborado. Encontram-se em Homero muitos relatos de atos desprendidos; mas os motivos eram sempre marcados por um egoísmo ingênuo. Se um guerreiro arrisca a vida para salvar um companheiro é porque tal devoção é gloriosa ou geralmente útil, pois significa a obtenção de um apoio que pode vir a ser necessário.

Como, então, estímulos egoístas, tão poderosos no início, desaparecem da conduta moral e dão lugar a motivos verdadeiramente desinteressados? Seria porque se tornam mais esclarecidos? Passaram as pessoas, depois de algum tempo, a perceber o egoísmo como um inimigo? Isso seria atribuir um enorme poder de previsão à inteligência humana em geral, e em especial à inteligência rústica dos povos primitivos. Na realidade, a evolução foi inteiramente mecânica; nem planejamento nem previsão tiveram participação. Os estímulos egoístas foram eliminados porque eram contraditórios. Em outras palavras, a evolução foi o produto de um tipo de estabilização e de regularização espontânea de tendências desse tipo (Compensation und Selbstregulation egoísdscher Triebe). Vamos imaginar que em alguns casos a simples simpatia não tenha a força necessária para superar as inclinações egoístas e só encontre apoio em motivos desinteressados. Quando isso acontece, a satisfação egoísta sentida por se ter triunfado sobre si próprio se transforma num motivo sui generis que reforça a tendência à simpatia e assegura sua vitória sem necessidade de maiores apelos a considerações desinteressadas. Fatores egoístas são dessa forma neutralizados e se cancelam mutuamente, ao passo que a tendência genuinamente altruísta emerge da massa que a confinava. Tal altruísmo, entretanto, não é apenas um egoísmo disfarçado ou transformado; e seria um erro confundir sua origem com a que o utilitarismo lhe atribuiu. O altruísmo não vem do egoísmo, pois nada deriva do seu oposto. Desde o início ele existe na obscuridade e geralmente neutralizado por interesses pessoais. Tais interesses não geram os seus contrários quando desaparecem cessam apenas de obstruir sua manifestação. Ademais, interesses pessoais certamente não se extinguem, nem hão de desaparecer completamente. Há espaço no coração humano para mais de um sentimento.

Como a simpatia original se prende unicamente a indivíduos, é natural que ela varie com eles. E a história demonstra que essa tendência primitiva se torna cada vez mais diferenciada à medida que se diferenciam os contextos onde ela aparece. De início, um mesmo sentimento une todos os membros de uma tribo (Stammgefühl) , e há consequentemente uma moral comum a todos – uma moral tão simples e inconsistente quanto a sociedade que representa. Mas quando a família começa a emergir do corpo dessa massa homogênea, sentimentos e uma moral domésticos se desenvolvem simultaneamente. Nascem depois os Estados, classes e castas se organizam, multiplicam-se as desigualdades, e se diversificam os sentimentos e moral coletivos conforme as condições sociais. Existe uma moral para cada classe social – escravos, homens livres, sacerdotes, guerreiros, etc. De outro lado, como a moral tem origens religiosas, ela passa a ser nacional, tal como a religião. Cada nação tem a sua própria moral, que se relaciona apenas consigo mesma: as pessoas têm deveres e obrigações apenas com seus concidadãos.

Mas essa dispersão das ideias morais não é a última palavra do progresso. Já há muito tempo um movimento de concentração vem se desenvolvendo, que ainda hoje se desenrola diante de nossos olhos. A medida que as sociedades se tornam maiores, os laços que prendem as pessoas entre si deixam de ser pessoais. A verdadeira simpatia é substituída por outra mais abstrata, mas não menos poderosa, uma ligação com a comunidade de que se participa, ou seja, com os bens materiais e ideias que as pessoas têm em comum – arte, literatura, ciências, costumes, etc. A partir desse ponto, membros da mesma sociedade são amigos e se ajudam mutuamente, não apenas por se conhecerem, ou conforme o grau de conhecimento que tenham entre si, mas porque participam todos da consciência coletiva. Esse sentimento é muito impessoal para permitir que a moral tenha a variedade que tinha antes; é muito geral para que a moral continue sendo particular. Na medida em que as ideias e sentimentos comuns surgem do âmago da sociedade, desaparecem as diferenças. Mesclados no corpo da consciência social que os envolve, indivíduos e classes, em virtude de suas próprias relações, veem diminuir gradualmente os abismos que antes os separavam. Essa fusão de indivíduos e classes não faz desaparecer as desigualdades externas, o que não é possível nem desejável, pois as desigualdades é um estimulante que, se não é moral em si, é necessário para a moral. Não é menos verdade, contudo, que todos os cidadãos da mesma nação tendem cada vez mais a se verem como iguais por se verem como servidores do mesmo ideal – do que resulta a crescente uniformidade de vestimenta, estilo, maneiras, etc., e a tendência cada vez mais pronunciada ao nivelamento das desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, esse ideal comunitário, por ser impessoal, independe cada vez mais de tempo e espaço. Eleva-se assim gradualmente acima de sociedade particulares e se torna o ideal único da humanidade. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a moral de classe e casta desaparece, também desaparece finalmente a moral nacional para que surja a moral da humanidade.

Quanto à civilização, ela tem uma influência complexa sobre essa tendência. Aprimoramento dos meios de transporte e de comunicação certamente contribuíram para a aceleração desse movimento de concentração; avanços tecnológicos aliviaram o peso esmagador do trabalho mecânico sobre o desenvolvimento da mente; a educação se distribuiu entre classes que a ela não tinham acesso, e o Estado passou a exigi-la de seus cidadãos. Mas ainda há bens mal distribuídos. A velocidade da comunicação, ao estender infinitamente os mercados e fazer a prosperidade individual depender de um número infinito de causas muito complexas, exige de cada um de nós esforços de planejamento e um gasto de energia que antes não era necessário à vida. Finalmente, a atual organização da indústria tem o efeito de separar os empresários mais e mais dos trabalhadores, revivendo a escravidão, que assume uma nova forma. Assim, a civilização não é em si um fator moral; ela contém elementos de todos os tipos e para a moral tem tanto desvantagens quanto vantagens. Isto não é razão para fazer retroceder a humanidade – proposta tão ridícula quanto absurda -, pois o mundo avança inexoravelmente e é impossível evitar a mudança. Se a civilização tem suas imperfeições e perigos, é preciso apenas reconhecê-los e livrar-se deles.

Essa análise histórica das ideias morais ocupa quase a metade da obra de Wundt e pode ser resumida nos seguintes tópicos: (Continua)

A moralidade

Uma tripla invenção: marca, acondicionamento e publicidade

LIPOVETSKY, G., 1944-. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução M. L. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 402p, (Continuação de: Capitalismo de consumo: as três eras).

Ao desenvolver a produção de massa, a fase I inventou o marketing de massa bem como o consumidor moderno. Até os anos 1880, os produtos eram anônimos, vendidos a granel, e as marcas nacionais, muito pouco numerosas. A fim de controlar os fluxos de produção e de rentabilizar seus equipamentos, as novas indústrias acondicionaram elas mesmas seus produtos, fazendo publicidade em escala nacional em torno de sua marca. Pela primeira vez, empresas consagram enormes orçamentos à publicidade; as somas investidas estão em aumento muito rápido: de 11 mil dólares em 1892, as despesas publicitárias da Coca-Cola elevam-se a 100 mil em 1901, 12 milhão em 1912, 3,8 milhões em 1929 (6).

Padronizados, empacotados em pequenas embalagens, distribuídos nos mercados nacionais, desde então os produtos vão ter um nome, o que lhes foi atribuído pelo fabricante: a marca. A fase I criou uma economia baseada em uma infinidade de marcas célebres, algumas das quais conservaram uma posição de destaque até nossos dias. É ao longo dos anos de 1880 que são fundadas ou que se tornam célebres a Coca-Cola, a American Tobacco, a Procter & Gamble, a Kodak, a Heinz, a Quaker Oats, a Campbell Soup. De 1886 a 1920, o número de marcas registradas na França passa de 5520 para 25 mil.

O aparecimento das grandes marcas e dos produtos acondicionados transformou profundamente a relação do consumidor com o varejista, este perdendo as funções que até então lhe estavam reservadas: daí em diante, não é mais no vendedor que se fia o consumidor, mas na marca, sendo a garantia e a qualidade dos produtos transferidas para o fabricante. Rompendo a antiga relação mercantil dominada pelo comerciante, a fase I transformou o cliente tradicional em consumidor moderno, em consumidor de marcas a ser educado e seduzido especialmente pela publicidade. Com a tripla invenção da marca, do acondicionamento e da publicidade, apareceu o consumidor dos tempos modernos comprando o produto sem a intermediação obrigatória do comerciante, julgando os produtos a partir de seu nome mais que a partir de sua composição, comprando uma assinatura no lugar de uma coisa (7).

Os grandes magazines

A produção de massa foi acompanhada pela invenção de um comércio de massa impulsionado pelo grande magazine. Na França, o Printemps é fundado em 1865 e Le Bon Marché, em 1869; Nos Estados Unidos, o Macy’s e o Bloomingdale’s tornam-se grandes magazines antes e depois dos anos 1870. Baseado em novas políticas de venda agressivas e sedutoras, o grande magazine constitui a primeira revolução comercial moderna, inaugurando a era da distribuição de massa.

Em primeiro lugar, os grandes magazines deram ênfase à rotação rápida dos estoques e a uma prática de preços baixos com vista a um volume de negócios elevado fundado na venda em grande escala: em 1890, mais de 15 mil pessoas se dirigiam por dia ao Bon Marché; 70 mil clientes o visitavvam nos dias de vendas especiais. O importante, daí para a frente, é a rapidez de escoamento de uma quantidade máxima de produtos, mas com uma margem de ganho menor. Em segundo lugar, esses novos empreendedores aumentaram consideravelmente a variedade dos produtos oferecidos aos clientes. Permitindo a entrada livre e as “devoluções”, vendendo a preços baixos e fixos, etiquetando os preços, o grande magazine rompe com as tradições comerciais do passado, especialmente com o ritual costumeiro do regateio sobre os artigos (8). Graças a uma política de vender barato, o grande magazine transformou os bens antigamente reservados à elite em artigos de consumo de massa destinados à burguesia.

Paralelamente, por intermédio de suas publicidades, de suas animações e ricas decorações, os grandes magazines puseram em marcha um processo de “democratização do desejo” (9) Ao transformar os locais de venda em palácios de sonho, os grandes magazines revolucionaram a relação com o consumo.

Estilo monumental dos magazines, decorações luxuosas, domos resplandecentes, vitrines de cor e de luz, tudo é montado para ofuscar a vista, metamorfosear o magazine em festa permanente, maravilhar o freguês, criar um clima compulsivo e sensual propício à compra. O grande magazine não vende apenas mercadorias, consagra-se a estimular a necessidade de consumir, a excitar o gosto pelas novidades e pelamoda por meio de estratégias de sedução que prefiguram as técnicas modernas do marketing. Impressionar a imaginação, despertar o desejo, apresentar a compra como um prazer, os grandes magazines foram, com a publicidade, os principais instrumentos da elevação do consumo a arte de viver e emblema da felicidade moderna. Enquanto os grandes magazines trabalhavam em desculpabilizar o ato de compra, o shopping, o”olhar vitrines” tornaram-se uma maneira de ocupar o tempo, um estilo de vida das classes médias (10). A fase I inventou o consumo-sedução, o consumo-distração de que somos herdeiros fiéis.

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6. R. S. Tedlow, op. cit, pp. 79-83.

7. Susan Strasser, Satisfaction guaranteed. The making of the American Mass Market, Nova York, Pantheon Book, 1989, pp. 87-8 e 35.

8. Michael B. Miller, Au Bon Marché 1869-1920. Le consommateur apprivoisé, Paris, Armand Colin, 1987.

9. William Leach, Land of desire. Marchants, power and the rise of new American culture, Nova York, Vintage Books, 1994.

10. M. B. op cit.

Uma tripla invenção: marca, acondicionamento e publicidade

Capitalismo de consumo: as três eras

LIPOVETSKY, G., 1944-. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Tradução M. L. Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007

Se a hipótese de uma nova era histórica da civilização consumidora é justa, é possível propor um esquema de sua evolução fundada na distinção de três grandes momentos. Não é necessário esclarecer que a “descrição” que dou deles é das mais sumárias, sendo o objetivo procurado apenas o de abarcar num único olhar um fenômeno complexo e secular, pôr em perspectiva o sentido das mudanças em curso, inscrevendo o presente na história longa da civilização de massa.

O nascimento dos mercados de massa

Produção e marketing de massa. O ciclo I era do consumo de massa começa por volta dos anos 1880 e termina com a Segunda Guerra Mundial.

Fase I que vê constituir-se, no lugar dos pequenos mercados locais, os grandes mercados nacionais tornados possíveis pelas infra-estruturas modernas de transporte e de comunicação: estradas de ferro, telégrafo, telefone,. Aumentando a regularidade, o volume e a velocidade dos transportes para as fábricas e para as cidades, as redes ferroviárias, em particular, permitiram o desenvolvimento do comércio em grande escala, o escoamento regular de quantidades maciças de produtos, a gestão dos fluxos de produtos de um estágio de produção a outro.¹

Essa fase é contemporânea, igualmente, da elaboração de máquinas de fabricação contínua que, elevando a velocidade e a quantidade dos fluxos ocasionaram o aumento da produtividade com custos mais baixos: elas abriram caminho para a produção de massa. No fim dos anos 1880, nos Estados Unidos, uma máquina já podia fabricar 120 mil cigarros por dia: trinta dessas máquinas bastavam para saturar o mercado nacional. Máquinas automáticas permitiam que 75 operários produzissem todos os dias 2 milhões de caixas de fósforos. A Procter & Gamble fabricavam 200 mil sabonetes Yvory por dia. Máquinas desse tipo apareciam igualmente na produção do material de limpeza, dos cereais matinais, dos rolos fotográficos, das sopas, do leite e outros produtos embalados. Assim, as técnicas de fabricação com processo contínuo permitiram produzir em enormes séries mercadorias padronizadas que, embaladas em pequenas quantidades e com nome de marca, puderam ser distribuídas em escala nacional, a preço unitário muito baixo².

A expansão da produção em grande escala é também estimulada pela reestruturação das fábricas em função dos princípios da “organização científica do trabalho”. Foi no setor do automóvel que estes receberam sua aplicação mais ampla. Graças à linha de montagem móvel, o tempo de trabalho necessário `montagem de um chassi do modelo “T” da Ford passou de doze horas e 28 minutos, em 1910, para uma hora e 33 minutos, em 1914. A fábrica de Highland Park punha à venda mil carros por dia. Tendo o aumento da velocidade da produção permitido baixar o preço de venda a ponto de representar apenas a metade do de seu concorrente mais próximo,³ as vendas de veículos com preços moderados tiveram um crescimento considerável.

O capitalismo de consumo não nasceu mecanicamente de técnicas industriais capazes de produzir em grandes séries mercadorias padronizadas. Ele é também uma construção cultural e social que requereu a “educação” dos consumidores ao mesmo tempo que o espírito visionário de empreendedores criativos, a “mão visível dos gestores”. No fundamento da economia de consumo encontra-se uma nova filosofia comercial, uma estratégia em ruptura com as atitudes do passado: vender a maior quantidade de produtos com uma fraca margem de ganho de preferência a uma pequena quantidade com uma margem importante. O lucro, não pelo aumento mas pela baixa do preço de venda. A economia de consumo é inseparável desta invenção de marketing: a busca do lucro pelo volume e pela prática dos preços baixos. (4). Pôr os produtos ao alcance das massas: a era moderna do consumo é condutora de um projeto de democratização do acesso aos bens mercantis.

A fase I já essa dinâmica, tendo um conjunto de produtos duráveis e não duráveis se tornando acessível a um maior número de pessoa. Esse processo, contudo, permaneceu limitado, uma vez que a maioria dos lares populares tem recursos muito escassos para poder adquirir os equipamentos modernos. Algumas cifras ilustram os limites dessa democratização. Nos Estados Unidos, em 1929, contam-se dezenove automóveis para cem habitantes, e na França e na Grã-Bretanha dois para cem habitantes. Em 1932, há nos Estados Unidos 740 aspiradores, 1580 ferros de passar e 180 fornos elétricos para 10 mil pessoas contra respectivamente, na França, 120, 850, oito. Na França, o uso dos aparelhos eletrodomésticos permaneceu muito tempo associado ao luxo: ainda em 1954, apenas 7% dos lares estão equipados com um refrigerador. A fase I criou um consumo de massa inacabado, com predominância burguesa (5). (Continua)

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¹ Sobre esses pontos, a obra clássica de Alfred D. Chandler, La main visible des managers, Paris, Économica, 1988.

² Ibid., pp. 325-32.

³ Ibid., pp. 304-16.

4. Richard S. Tedlow, L’audace et le marché. L’invention du marketing aux États Unis, Paris, Odile Jacob, 1997.

5. Cf. Patrice Carré, “Les ruses de la “fée électricité”, in Du luxe au comfort (sob a direção de Jean-Pierre Goubert), Paris, Belin, 1988.

Capitalismo de consumo: as três eras

O pensamento contra o medo (ou uma conclusão inconclusa para os que podem perguntar o que deve ser feito)

BAUMAN, Z., 1925-2017. Medo líquido. Tradução C. A. Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 239p.

Compartilhando com seus leitores os três choques que vivenciou em 1990 ao tomar conhecimento, em rápida sucessão, dos falecimentos de Althusser, Benoist e Loreau, Jacques Derrida observou que cada morte é o fim de um mundo, e a cada vez o fim de um mundo singular, que jamais poderá reaparecer ou ser ressuscitado.¹ Cada morte é a perda de um mundo – uma perda eterna, irreparável. A morte é, podemos dizer, o alicerce empírico e epistemológico da idéia de singularidade.

O falecimento de Ralph Miliband foi um choque particularmente cruel e doloroso para as pessoas que rejeitavam a crença panglossiana – de que tudo que poderia ser feito para tornar o planeta menos ameaçador e atemorizante para os seres humanos, e portanto mais hospitaleiro para o ser humano e para a vida humana, já o tinha sido – e que se recusavam a aceitar que nenhum melhoramento fosse concebível. O mundo de Miliband, singular e inimitável, era um mundo de esperança imorredoura. Por essa razão, contudo, ele também continua sendo parte indispensável e fonte de perpétuo enriquecimento para nossos próprios mundos. É tarefa dos vivos manter viva a esperança; ou então ressuscitá-la em um mundo em rápida transformação, notável por alterar rapidamente as condições em que é conduzida a luta contínua com o propósito de torná-lo mais hospitaleiro para a humanidade.

O trabalho de Ralph Miliband simbolizou o grave desafio enfrentado pelos intelectuais do seu tempo (intelectuais: as pessoas que continuaram acreditando que o derradeiro propósito do pensamento é fazer o mundo melhor do que encontraram), e os meios e maneiras pelos quais as pessoas ditas “intelectuais” tentaram, com resultados ambíguos não poucos erros, reagir a esse desafio.

O desafio em questão era a lenta, mas inexorável (embora desprezada por muito tempo e deliberadamente ignorada por mas tempo ainda) decomposição do “agente histórico” que, segundo a expectativa dos intelectuais (cientes dos padrões “orgânicos” estabelecidos para eles pelo código de conduta de Antonio Gramschi, e dolorosamente cônscios dos efeitos práticos limitados do pensamento puro), iria introduzir ( ou ser introduzido em) uma terra em que o salto para a liberdade, a igualdade e a fraternidade, vislumbrado em sua forma prístina pelos pensadores do Iluminismo – porém mais tarde transformado nos becos sem saída do capitalismo ou do comunismo -, finalmente alcançaria seu destino socialista.

Nos mais ou menos dois séculos de sua história (moderna), os intelectuais fizeram todo o percurso desde a auto confiança e a audácia do jovem Ícaro até o ceticismo e a circunspecção do velho Dédalo (uma jornada que, fique bem claro, ainda não foi encerrada, embora sua rota até agora tenha sido, e tudo indica que continue sendo, bem diferente de uma linha reta…). E juntamente com todo o espectro de projetos, atitudes e Weltanschauungen nascidos, experimentados e abandonados ao longo dessa rota – de autoconfiança, coragem e impetuosidade de sua juventude arrogante (quando Claude-Henri Saint-Simon convocou seus “intelectuais positivos” “a unificar e combinar suas forças para desferir um ataque geral e definitivo contra os preconceitos, e começar a organizar o sistema industrial”) e até a idade avançada em que se recobra o juízo, a cautela e a ponderação (quando Ludwig Wittgenstein concluiu, resignadamente, que a filosofia deixa tudo como estava”) -, eles sempre suspeitaram tacitamente ou se queixaram em voz alta da impotência do “pensamento puro.” As palavras seriam capazes de mudar o mundo? Dizer a verdade é suficiente para garantir a vitória sobre a mentira? Será a razão capaz de se sustentar por si mesma diante do preconceito e da superstição? Será provável que o mal acabe sucumbindo perante a glória luminosa da bondade, ou a feiúra perante o esplendor ofuscante da beleza? […]

O pensamento contra o medo (ou uma conclusão inconclusa para os que podem perguntar o que deve ser feito)

Entrevista sobre Nietzsche

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. O caso Wagner: um problema para músicos; Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução P. C. de Souza. SãoPaulo: Companhia de Bolso, 2016. 117p.

Á guisa de posfácio; Nietzsche, Wagner e a música

Entrevista com C. P. Franz*

1Curt Paul Janz é autor da mais conceituada biografia de Friedrich Nietzsche (publicada por Hanser/DTV, Munique, 1981, 3 vols., quase 2000 páginas). É também especialista na música de Nietzsche, tendo editado as composições do filósofo (sim, o autor de Zaratustra foi também compositor). Nascido em 1911 na Basiléia, Suiça, onde vive até hoje, Janz teve formação em musica, letras clássicas e filosofia. Durante 46 anos, foi instrumentarista (viola) da Sinfônica da Basileia. Após um primeiro contato por telefone, concordou em responder por escrito algumas questões sobre Nietzsche. Várias respostas foram bem breves, complementadas aqui com trechos de um ensaio que ele enviou. Numa carta pessoal e bastante humana (nunca demasiado…), ele se desculpou pela dificuldade em escrever[..]

PCS – Qual sua opinião sobre Nietzsche como compositor? O senhor partilha o julgamento negativo de algum contemporâneo dele, do maestro Hans van Bülow, por exemplo?

Janz – Sobre Nietzsche como compositor é bem difundido o julgamento e Bülow, que infelizmente as pessoa repetem sem conhecer as composições. Minha experiência é de que em toda a parte onde organizei interpretações de obras dele, para ilustrar minhas conferências, tanto os intérpretes como o público ficaram surpresos e entusiasmados. Foi em virtude desse entusiasmo que a Sociedade da Suiça para a Pesquisa da Música me incumbiu de editar o legado musical de Nietzsche. o volume, com 315 páginas de partituras, foi publicado em 1976 por Närenreiter, de Kessel.

PCS – Nietzsche afirmou que “a vida sem música seria um erro”, e que a música é “o mais admirável dos dons de Deus”. Até que ponto o pensamento dele foi influenciado pela música e, inversamente, como sua relação com a música foi influenciada pela filosofia?

Janz – O pensamento de Nietzsche foi “musical” na medida em que foi fortemente emocional, nascido da vivência do momento – não obstante toda a agudeza do intelecto. Sua musicalidade influi também na configuração, na “forma! de seus escritos, o que por outro lado determina sua relação com a música; ele exige acabamento formal de contornos nítidos, em oposição à difusa “melodia interminável de Wagner.

PCS – Existem outros pensadores para os quais a música seja tão importante?

Janz – Além de Nietzsche, o único filósofo compositor do meu conhecimento é Rousseau, que aliás foi muito produtivo. Dele existe uma ópera cômica bem-sucedida, Le devin du village (O adivinho da aldeia), e trabalhos relevantes de teoria musical. Em Platão a música tem um papel fundamental. Mas não sabemos com certeza se ele próprio tocava um instrumento, como o diaulo ou a lira.

PCS – “É sempre extraordinário como se manifesta na música a imutabilidade do caráter; o que o menino nela expressa é tão claramente a linguagem da essência de sua natureza, que também o homem nada deseja nela mudar” (Nietzsche). O que a música de Nietzsche lhe revelou sobre ele?

Janz – As composições são, como a maior parte de seus escritos, uma forma de lidar com impressões imediatas. Ele toca e ouve Chopin; então senta e escreve duas peças nessa “linguagem”. esse caso me abriu os olhos para o fato de que em seus escritos se acha com frequência o mesmo procedimento, Basta ver, no Zaratustra ( que por isso é um tanto desagradável), os tons bíblicos na reação ou acerto de contas com a Bíblia.

PCS – As composições de Nietzsche são todas da juventude. Ele parou de compor aos trinta anos. A que o senhor atribui isso?

Janz – Você quer dizer, por que ele parou? Creio que a desavença e desarmonia interior com Wagner e com todo o romantismo liquidou o impulso musical – que era romântico. O fenômeno Wagner se compreende no interior do romantismo alemão, que ele esgotou e também coroou, com uma obra incomparável. A obra do compositor mais venerado por Nietzsche, Beethoven, significa uma ruptura com e a partir do “classicismo!1 de Haydn e Mozart, em direção ao romantismo, do qual não chega a fazer parte. Esta é também a situação de Nietzsche na evolução musical e espiritual do fim do século passado e início deste; Ele é um romântico nato, como provam suas composições, mas como pensador se coloca na ruptura rumo à modernidade, que não chegou a vivenciar; foi u precursor e preparador.

PCS – Sobre a relação Nietzsche-Wagner: Nietzsche apareceu como defensor e amigo de Wagner, com O nascimento da tragédia (1872), mas seus últimos livros, de 1888, contêm críticas severas a Wagner. Como o senhor apreende esta mudança?

Janz – Eu distingo três níveis na relação Nietzsche-Wagner: o humano-pessaol, o religioso e filosófico e o”hisórico-espiritual”. Wagner tinha uma personalidade exuberante, mas também dominadora e intolerante para com outros artistas (como Brahms). Nietzsche tinha de se subtrair a essa dominação. Wagner nasceu em 1813 (mesmo ano do pai de Nietzsche), e ele em 1844. Não era uma relação inter-pares. É preciso lembrar que, enquanto Wagner já era famoso mundialmente, Nietzsche era um jovem desconhecido. No plano filosófico e religioso, as divergências foram se acentuando. Nietzsche rompeu com o cristianismo aos dezessete anos; um passo doloroso, documentado também nas composições da época, que eram sacras (oratórios), e subitamente passaram a “profanas”. Quando Wagner compôs o Parsifal, Nietzsche acreditou ver na obra uma conversão ou recaída do velho Wagner no cristianismo. – o que para ele era uma grande ofensa. Não me parece casual que O caso Wagner e O Anticristo sejam da mesma época. Nietzsche também desaprova o apego de Wagner à filosofia pessimista de Shopenhauer. O terceiro plano é aquele mencionado acima: a superação do romantismo por Nietzsche.

PCS – Em O caso Wagner Nietzsche criticou a vanguarda, o impulso vanguardista. Mas ao mesmo tempo gostava de se ver como um descobridor de novos mundos, um Colombo da filosofia. Não lhe parece uma contradição?

Janz – Ele criticou a “vanguarda” de então, porque na realidade ela consistia apenas em seguidores de Wagner, em epígonos do mestre. Eles compunham conforme o lema: Frisch gewagnert ist halb gewonnwn [trocadilho com o provérbio Frisch geiwagt its halb gewonnen, que significa aproximadamente: “Quem ousa primeiro tem meia vitória”].

PCS – Nietzsche superestimou bastante a música de Heinrich Köselitz (que chamava de Peter Gast). Que motivos houve para isso?

Janz – Ele superestimou Köselitz porque este recorre aos modelos,

às formas herdadas da música “clássica”. O que Nietzsche não percebeu é que ele nada tem a dizer sob essa roupagem formal.

PCS – Quanto à recepção atual da música de Nietzsche: ela é tocada publicamente?

Janz – Sim, é cada vez mais tocada. Existem long-plays, as rádios alemãs apresentam com frequência composições de Nietzsche, em geral emprestadas da Rádio Basileia, onde foram feitas muitas gravações. Há poucos dias recebi de uma organização, The Nietzsche Music Project, de Nova York, um CD com setenta minutos de música para piano. Dizem que lá se tornou u best-seller. Além disso, Fischer-Diskau gravou cinco lieder de Nietzsche, etc.

PCS – Sua biografia de Nietzsche tornou-se uma referância obrigatória nos estudos sobre ele. Em que línguas ela já foi traduzida?

Janz – Em francês, pela Gallimard, de Paris, em italiano, pela Laterza, de Bari; em espanhol. pela Alianza, de Madri; em holandês, pela Tirion. E será publicada em inglês pela Cambridge University Press.

PCS – Todo estudioso de Nietzsche tem um favorito entre os livros dele. Qual o seu?

Janz – Lieblingsbuch! (“Livro favorito!”) Enquanto me ocupei apenas secundariamente de Nietzsche (devo confessar, para minha vergonha) era o Zaratustra, naturalmente. Mas a ele prefiro, como leitura propriamente filosófica, A gaia ciência e Além do bem e do mal. Como primeira leitura recomendo sempre um teto que ele não chegou a publicar, “Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”.

PCS – Em que o senhor trabalha no momento?

Janz – O primeiro volume da edição alemã (da biografia( está esgotado há dois anos. A editora quer lançar uma segunda edição no princípio de 93, e há alguns acréscimos e correções a fazer. Pouca coisa e nada de essencial. Depois quero descansar de Nietzsche. Me desculpe, mas não quero mais sabber do assunto. Ainda cuido do nosso jardim, como faria minha mulher, faço muitas caminhadas, para estar junto com as pessoas, e toco música: quase todo dia praatico as inesgotáveis sonatas solos de Bach. Felizmente meus velhos dedos ainda conseguem isso; é uma dádiva e uma raridade.

Entrevista sobre Nietzsche

A justiça que pune

NIETZSCHE, f. w., 1844-1900. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 330p.

Infelicidade e culpa – essas duas coisas foram postas pelo cristianismo na mesma balança: de modo que, quando é grande a infelicidade que sucede a uma culpa, ainda hoje a grandeza da culpa e involuntariamente medida por ela. Mas isso não é antigo, e por causa disso a tragédia grega, que tanto fala de infelicidade e culpa, embora em sentido bem diferente, está entre os grandes libertadores do ânimo, numa medida em que os próprios antigos não era dado sentir. Eles permaneceram tão inócuo que não estabeleceram “relação adequada” entre culpa e infelicidade. A culpa de seus heróis trágicos é a pequena pedra na qual tropeçam e, por isso, quebram o braço ou arrancam um olho: a sensibilidade antiga comentava sobre isso: “Sim, ele deveria ter seguido sua estrada com mais cautela e menos petulância!”. Mas apenas ao cristianismo estava reservado dizer: “Eis uma grave infelicidade, e por trás dela de se esconder uma culpa grave, igualmente grave, ainda que não a vejamos claramente! Se você, infeliz não percebe isto assim, está endurecido – experimentará coisas piores!” – Na Antiguidade ainda não havia realmente infelicidade, pura, inocente infelicidade; apenas no cristianismo tudo se torna castigo, punição bem merecida: ele faz, sofredora também a imaginação do sofredor, de modo que este, em tudo o que sucede de mau, sente-se moralmente reprovado e reprovável. Pobre humanidade! Os gregos têm uma palavra própria para a indignação com a infelicidade do outro: este afeto era inadmissível entre os povos cristãos e desenvolveu-se pouco, e assim eles carecem de nome para esse irmão viril da compaixão.

A justiça que pune

“O que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”

NIETZSCHE, F. W.,1844-1900. O caso Wagner: um problema para os músicos; Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016. 115p.

O caso Wagner

Carta de Turim, maio de 1888

ridendo dicere severum…¹

Ontem – vocês acreditarão? – ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet². Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir. Este triunfo sobre a minha impaciência me espanta. Como uma obra assim aperfeiçoa! Tornamo-nos nós mesmos “obra-prima”. – Realmente, a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio; tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário … Cinco horas sentado: primeira etapa da santidade!- Posso acrescentar que a orquestração de Bizet é quase a única que ainda suporto? Essa outra orquestração atualmente em voga, a wagneriana, brutal artificial e “inocente” ao mesmo tempo, e que assim fala simultaneamente aos três sentidos da alma moderna – como me é prejudicial essa orquestração wagneriana! Eu a denomino “siroco”. Um suor desagradável me cobre de repente. O meu tempo bom vai embora.

Esta música me parece perfeita. Aproxima-se leve, sutil, com polidez. É amável, não transpira. “O que é bom é leve, tudo divino se move com pés delicados”: primeira sentença da minha estética. Esta música é maliciosa, refinada, fatalista: no entanto, permanece popular – ela tem o refinamento de uma raça, não de um indivíduo. É rica. É precisa. Constrói, organiza, conclui: assim, é o contrário do pólipo na música, a “melodia infinita”.³ Alguém já viu num palco entonações mais dolorosamente trágicas? E a maneira como são obtidas! Sem caretas! Sem falsificação! Sem a mentira do grande estilo! – Por fim: esta música trata o ouvinte como pessoa inteligente e até como músico – e também nisso é o oposto de Wagner, que, seja o que mais for era o gênio mais descortês do mundo (Wagner nos trata como se – -, ele repete uma coisa com tal frequência que esperamos – que acreditamos nela).

Mais ainda: eu me torno um homem melhor, quando esse Bizet me persuade. E também um músico melhor, um ouvinte melhor. É possível se escutar ainda melhor? Eu enterro os meus ouvidos sob essa música, eu ouço a sua causa. Parece-me presenciar a sua gênese – estremeço ante os perigos que acompanham alguma audácia, arrebatam-me os acasos felizes de que Bizet é inocente. – E, coisa estranha, no fundo não penso nisso, ou não sei o quanto penso nisso. Pois nesse ínterim me passam bem outros pensamentos pela cabeça. Já se percebeu que a música faz livre o espírito? que dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico? O céu cinzento da abstração atravessado por coriscos; a luz, forte o bastante para se verem as filigranas; os grandes problemas se dispondo à apreensão; o mundo abarcado com a vista, como de um monte, – Acabo de definir o pathos filosófico. – E de súbito caem-me respostas no colo, una pequena chuva de gelo e sapiência, de problemas resolvidos... Onde estou? – Bizet me faz fecundo. Tudo o que é bom me faz fecundo. Não tenho outra gratidão, nem tenho outra prova para aquilo que é bom. […]

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¹ “Rindo, dizer coisas graves”: citação e paródia de Horácio, Sátiras I. 1, 24: […] ridentem dicere verum quid vetat (” o que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”).

² Nietzsche ouviu Carmen pela primeira vez em 27 de novembro de 1881, em Gênova. Depois assistiu a várias apresentações dessa ópera (não sabemos quantas exatamente: “vigésima” é provavelmente força de expressão), inclusive na primavera de 1888, em Turim, quando escrevia O caso Wagner – como atesta uma carta endereçada a Peter Gast em 20 de abril de 1888, na qual diz, em italiano e bem-humoradamente : successo piramidale, tutto Torino carmenizzato! (em Sämtliche Briefe, ed. G. Colli e M. Montinari, DTV/de Gruyter, vol. 8, p. 299; esta carta, juntamente com outras relativas ao O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, acha-se no final do presente volume.

“O que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”

“Vaso da felicidade”

NIETZSCHE,F. W., 1844-1900. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução P. C de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 349p.

A esperança. – Pandora trouxe o vaso (38) que continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente um presente belo e sedutor, denominado “vaso da felicidade”. E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente; então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro. O homem tem gora para sempre o vaso da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o abre quando o quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens – é a esperança – Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes a esperança; ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.

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38. “vaso”: FaS , no original. Habitualmente se fala em ‘caixa de Pandora”, mas a consulta a uma edição bilingüe de os trabalhos e os dias, de Hesíodo (trad. Mary de Camargo Neves Lafer, São Paulo, Iluminuras, Biblioteca Pólen, 1990, p. 28), revela que o termo grego original é pithos, que corresponde a “vaso, recipiente, jarro 9esta a opção da tradutora), em português , e a FaS, em alemão. O comentário de Nietzsche sobre o mito de pandora, nesta seção, tem afinidade com um belo poema de Manuel Bandeira, intitulado “A vida sssim nos afeiçoa”.

“Vaso da felicidade”