Os homens são livres […] enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa

ARENDT, H., 1906-1975. Entre o passado e o futuro. Tradução M. Barbosa. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016. 348p.

A liberdade, enquanto relacionada à política, não é um fenômeno da vontade.

Não estamos aqui às voltas com o liberum arbitrium, uma liberdade de escolha que arbitra e decide entre duas coisas dadas, uma boa e outra má, escolha predeterminada pelo fato de ser bastante discuti-la para iniciar sua operação: “And therefore, since I cannot prove a lover, / To entertain these fair well-spoken days, / I am determined to prove a villain, / And hate the idle pleasures of these days”. Ela é antes, para continuar com Shakespeare, a liberdade de chamar à existência o que antes não existia, o que não foi dado nem mesmo com um objeto de cognição ou de imaginação e que não poderia portanto, estritamente falando, ser conhecido. Para que seja livre, a ação deve ser livre, por um lado, de motivos e, por outro, do fim intencionado como um efeito previsível. Isso não quer dizer que motivos e objetivos não sejam fatores importantes em todo ato particular, mas sim que eles são seus fatores determinantes e a ação é livre na medida em que é capaz de transcendê-los. A ação, enquanto determinada, guia-se por um desígnio futuro cuja conveniência foi percebida pelo intelecto antes que a vontade o intentasse, motivo por que o intelecto depende da vontade, já que apenas a vontade pode ditar a ação – para parafrasear uma típica descrição desse processo dada por Duns Scotus (10). O desígnio da ação varia e depende das circunstâncias mutáveis do mundo; identificar uma meta não é uma questão de liberdade, mas de julgamento certo ou errado. A vontade, vista como faculdade humana distinta e separada, segue-se ao juízo, isto é, à cognição do objetivo certo, e comanda então sua execução. O poder de comandar, de ditar a ação, não é questão de liberdade, mas de força ou fraqueza.

A ação, na medida em que é livre, não se encontra nem sob a direção do intelecto, nem de baixo das ditames da vontade – embora necessite de ambos para a execução de um objetivo qualquer – ; ela brota de algo inteiramente diverso que, seguindo a famosa análise das formas de governo por Montesquieu, chamarei de um princípio. Princípios não operam no interior do eu como o fazem motivos – “a minha própria perversidade”, ou meu “justo equilíbrio” -, mas como que inspiram do exterior, e são gerais para prescreverem metas particulares, embora todo desígnio possa ser julgado à luz de seu princípio uma vez começado o ato. Pois, ao contrário do juízo do intelecto que precede a ação e do império da vontade que a inicia, o princípio inspirador torna-se plenamente manifesto somente no próprio ato realizador; e contudo, ao passo que os méritos do juízo perdem sua validade e o vigor da vontade imperante se exaure, no transcurso do ato que executam em colaboração, o princípio que o inspirou nada perde em vigor e em validade através da execução. Distintamente de sua meta, o princípio de uma ação pode ser repetido mais uma vez, sendo inexaurível, e, diferentemente de seu motivo, a validade de um princípio é universal , não se ligando a nenhuma pessoa ou grupo em especial. Entretanto, a manifestação de princípios somente se dá através da ação, e eles se manifestam no mundo enquanto dura a ação e nada mais. Tais princípios são a honra ou a glória, o amor à igualdade, que Montesquieu chamou de virtude, ou a distinção, ou ainda a excelência – o grego aeí aristeúein (“ambicionar sempre fazer o melhor que puder e ser o melhor de todos”), mas também o medo, a desconfiança ou o ódio. A liberdade e o seu contrário surgem no mundo sempre que tais princípios são atualizados; o surgimento da liberdade, assim como a manifestação de princípios, coincide sempre com o ato em realização. Os homens são livres – diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa.

____________________________________________

10. Intellectus apprehendit agibile antequam voluntas illud velit; sed non apprehendit determinate hoc esse agendum quod apprehendere dicitur dicare. Oxon. IV, d. 46, qu. I, nº 10.

Os homens são livres […] enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa