[Porque a brevidade é a alma do chiste, e a prolixidade, o corpo e ornamento externo. Serei breve].

FREUD, S., 1856-1939. o chiste e sua relação com o inconsciente [1905]. Tradução F. C. Matos e P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 347p. (Obras completas, v. 7)

A. Parte analítica

[I] Final

[…] O contraste das representações [Vorstellungskontrast] é enfatizado em definições como a de Kraepelin. O chiste seria “a ligação ou conexão arbitrária, em geral com o auxílio da associação de palavras de duas representações de algum modo contrastantes entre si”. Não é difícil para um crítico como Lipps, mostrar a completa insuficiência dessa fórmula. Mas ele próprio não descarta o fator contraste, deslocando-o antes para outro lugar. “O contraste permanece mas ele não é um contraste entendido de um modo ou de outro, entre as representações associadas às palavras, e sim o contraste ou contradição entre o significado e a falta de significado das palavras” (Lipps, p. 87). Exemplos esclarecem como isso deve ser compreendido. “Um contraste surge somente quando […] concedemos um significado às suas palavras que, no entanto, não poderíamos conceder” (p. 90).

A oposição de “sentido e falta de sentido” adquire significado no desenvolvimento ulterior dessa última caracterização. “Aquilo que por um momento havíamos tomado como pleno de sentido mostra-se agora inteiramente sem sentido para nós. Nisso consiste, nesse caso, o processo cômico” (pp. 85 ss.). “Um enunciado parece chistoso quando lhe atribuímos um significado que possui necessidade psicológica e, ao atribuí-lo, voltamos a retirá-lo de imediato. Sob ‘significado’ podem-se entender aí coisas diferentes. Emprestamos um sentido a um enunciado sabendo que ele não podem pertencer-lhe logicamente. Encontramos uma verdade nele que, no entanto, não podemos encontrar quando seguimos as leis da experiência ou os hábitos universais do nosso pensamento. Nós lhe concedemos uma consequência lógica ou prática que vai de seu conteúdo verdadeiro, para, tão logo enxerguemos a natureza mesma do enunciado, negar justamente essa consequência. Em cada caso, o processo psicológico que o enunciado do chiste desperta em nós, e no qual se baseia o sentimento de comicidade, consiste na passagem imediata daquele emprestar sentido, tomar por verdadeiro, admitir consequências, à consciência ou impressão de uma relativa nulidade.”

Por mais penetrante que essa argumentação pareça, poder-se-ia perguntar aqui se a oposição do pleno de sentido ao sem sentido, na qual se baseia o sentimento de comicidade, também contribui para a determinação conceitual do chiste enquanto distinto do cômico.

O fator da “estupefação aclaramento” também aprofunda o problema da relação do chiste com a comicidade. A respeito do cômico em geral, Kant diz que é uma característica notável do mesmo a de iludir-nos apenas por um momento. Heymans explica como o efeito de um chiste se produz pela sequência de estupefação e aclaramento.³ Ele ilustra a sua afirmação com um ótimo chiste de Heine, em que um de seus personagens, o pobre agente de loteria Hirsch-Hyacinth, se gaba de ter sido tratado pelo grande barão de Rothschild como um semelhante, de modo inteiramente familionário. A palavra portadora do chiste parece aí, num primeiro momento, uma formação equivocada, algo incompreensível, inconcebível, enigmático. Com isso ela produz espanto. A comicidade se dá com a dissolução da estupefação, com a compreensão da palavra. Lipps acrescenta que a esse primeiro estágio do aclaramento – a compreensão de que a palavra causadora de espanto significa isso e aquilo -se segue um segundo estágio, no qual se entende que essa palavra nos tinha primeiro espantado e, então, fornecido o sentido correto. Somente esse segundo esclarecimento, isto é, a compreensão de que uma palavra sem sentido segundo o uso comum da linguagem era a responsável pela graça do chiste – esta dissolução do nada -, é que produz a comicidade (Lipps, p. 85).

Independentemente de qual dessas duas visões nos pareça mais elucidativa, através das explicações sobre estupefação e aclaramento nos aproximamos de uma melhor compreensão. Se, de fato, o efeito cômico do familionário de Heine se baseia na dissolução da palavra aparentemente sem sentido, então o “chiste” pode ser vinculado à formação dessa palavra e à natureza da palavra assim formada.

Sem nenhuma conexão com os pontos de vista tratados por último, há uma outra particularidade do chiste que é reconhecida por todos os autores como essencial a ele, “A brevidade é o corpo e a alma do chiste; é o chiste ele mesmo”, diz Jean Paul, (4) apenas modificando com isso uma fala do velho tagarela Polônio, no Hamlet de Shakespeare (ato II, cena 2): *

Therefore, since brevity is the soul of wit

And tediousness the limbs and outward flourisher

I will be brief

[Porque a brevidade é a alma do chiste,

E a prolixidade, o corpo e ornamento do chiste,

Serei breve].

É significativa, pois, a descrição do chiste feita por Lipps. ” O chiste diz o que tem a dizer sem sempre em poucas, mas sempre em palavras de menos, isto é, em palavras que, segundo uma lógica estrita ou o modo comum de pensar e falar, não seriam suficientes para dizê-lo. No fim das contas, ele pode inclusive dizer o que tem a dizer silenciando” (Lipps, p. 90).

Já aprendemos, na vinculação do chiste com a caricatura, que “o chiste tem de fazer aparecer algo oculto ou escondido” (K. Fischer, p. 51). Eu enfatizo novamente essa definição porque ela também tem mais a ver com a natureza do chiste do que com o seu pertencimento à comicidade.

________________________________

³ Zeitschrift für Psychologie [Revista da psicologia], v. XI, n. 86.

4. Vorschule der Ästhet [Propedêutica à estética], v. I, § 45.

*A citação é dada aqui no original inglês, mas Freud cita a tradução alemã de Schlegel: Weil Kürze dann des Witzes Seele ist,/ Weitschweifigkeit der leib und äussere Zierat,/ Fass’ ich mich kurz”.

[As notas chamadas por asterisco e as interpolações às notas do autor são sempre numeradas.]

[Porque a brevidade é a alma do chiste, e a prolixidade, o corpo e ornamento externo. Serei breve].

O objeto da comicidade é o feio: ele tem de ficar visível à luz do dia […]. Assim surge a caricatura.

FREUD, S., 1856-1939. O chiste e sua relação com o inconsciente [1905]. Tradução F. C. Mattos e P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. (Obras completas, v. 7)

Parte analítica : 1. Introdução

[1]

Quem teve a oportunidade de informar-se, em textos de estetas e psicólogos, sobre que esclarecimento pode ser dado á respeito da natureza e das implicações do chiste, terá de admitir que os esforços filosóficos destinados a esse tema não estiveram à altura do que ele merece, tendo em vista seu papel em nossa vida psíquica. Só se poderia indicar um número bem pequeno de pensadores que se ocuparam mais detidamente do problema do chiste. Entre aqueles que trabalharam com ele, estão certamente os brilhantes nomes do poeta Jean Paul (Friedrich Richter) e dos filósofos Theodor Vischer, Kuno Fischer e Theodor Lipps. Mas mesmo nesses autores o tema do chiste fica no pano de fundo, ao passo que o interesse principal da investigação é dirigido ao problema mais abrangente e instigante do cômico.

A primeira impressão que se tem, a partir dessa literatura, é a de que seria inteiramente impraticável tratar dos chistes fora do contexto do cômico.

Segundo Theodor Lipps,¹ o chiste é “a comicidade inteiramente subjetiva”, isto é, a comicidade “que nós produzimos, que adere à nossa conduta enquanto tal e perante a qual nós nos comportamos sempre como sujeito superior, jamais como objeto – nem mesmo como objeto voluntário” (p.80). É elucidativa, quanto a isso, a observação de que o chiste seria, em geral, “toda evolução consciente e habilidosa à comicidade, seja a comicidade da observação, seja da situação”.

Fischer explica a relação do chiste com o cômico recorrendo á caricatura que introduziu entre ambos em sua exposição.² O objeto da comicidade é o feio, em qualquer das formas sob as quais aparece: “Onde está escondido, ele tem de ser descoberto à luz do ponto de vista econômico; onde é pouco ou nada perceptível, tem de ser exposto e, assim, esclarecido; ele tem de ficar visível à luz do dia […]. Assim surge a caricatura” (p. 45). “Todo o nosso mundo espiritual, o reino intelectual de nossos pensamentos e representações, não se desenvolve sob o olhar da observação externa, não se deixa representar imediatamente imediatamente de modo figurativo ou visual e, além disso, contém também as suas inibições , fraquezas, e desfigurações, uma série de coisas risíveis e contrastes cômicos. Para acentuar tais elementos, e torná-los acessíveis à consideração estática, será necessária uma força capaz não apenas de representar objetos imediatamente, mas de refletir sobre estas representações mesmas e torná-las claras: uma força que ilumina o pensamento. Essa força é o juízo. E o juízo que produz o contraste cômico é o chiste, que já operava silenciosamente na caricatura, mas só atinge sua forma própria e o terreno livre de seu desenvolvimento no juízo” (pp. 49-50).

Como se vê, Lipps situa a característica que distingue o chiste, em meio ao cômico, na atividade, no comportamento ativo do sujeito, ao passo que K. Fischer caracteriza o chiste através da relação com o seu objeto, um objeto constituído do feio que se oculta no mundo de nossos pensamentos. Essas definições do chiste não podem ser postas à prova quanto á sua pertinência, e não se pode sequer compreendê-las caso não estejam inscritas no contexto de que foram retiradas. Seria necessário, portanto, trabalhar detidamente nos textos desses autores sobre o cômico, para aprender algo sobre o chiste com eles. Mas se percebe, em outras passagens, que esses mesmos autores são capazes de indicar aspectos essenciais e universalmente válidos do chiste prescindindo de sua relação como cômico.

A caracterização do chiste com que o próprio Fischer parece mais satisfeito é a seguinte: “O chiste é um juízo lúdico (p. 51). Para elucidar essa expressão, eles nos remete a uma analogia: “do mesmo momo como a liberdade estética consistia na contemplação lúdica das coisas” (p. 50). Em outra passagem, a atitude estética frente a um objeto é caracterizada pela condição de que nada exigimos desse objeto, em especial nenhuma satisfação de nossas necessidades primárias, mas apenas nos satisfazemos em fruir a sua contemplação. A atitude estética é lúdica, em contraposição ao trabalho – “Poderia erque da liberdade est´rtic nascesse também um tipo de juízo liberto dos padrões e amarras habituais, ao qual gostaria e chamar, tendo em vista sua origem, ‘o juízo lúdico‘; e que nesse conceito estivesse contida a primeira condição, se não a fórmula inteira, que soluciona a nossa tarefa. ‘A liberdade produz o chiste, e o chiste produz a liberdade”, diz Jean Paul. ‘O chiste é um mero jogo com as ideias'”. (p. 24)

Sempre se gostou de definir o chiste como a prontidão para encontrar semelhanças entre as coisas dessemelhantes, isto é, semelhanças ocultas. Jean Paul exprimiu esse pensamento de maneira jocosa. “O chiste é o padre disfarçado que une todos os casais”. T. Vischer acrescenta uma continuação: “De preferência, ele une os casais cuja relação oa parentes desaprovam”. Ele objeta, porém,que há chistes em que não se verifica comparação alguma, nem, portanto, descoberta de semelhanças. Ele define o chiste, assim, afastando-se um pouco de jean Paaul, como a prontidão para juntar numa unidade, com rapidez surpreendente, diversas representações que, segundo seu conteúdo interno e o contexto a que pertencem, são essencialmente estranhas umas às outras. K. Fischer salienta então que em muitos juízos chistosos não se encontra semelhanças, mas sim diferenças, e Lipps chama a atenção para o fato de que essas definições se referem ao chiste que o anedotista já sabe, não ao que ele faz.

Outros pontos de vista que foram adotados na tentativa de determinar conceitualmente ou descrever o chiste, e que estão em certo sentido ligados, são o “contraste das representações”. “o sentido no absurdo”, a “estupefação e aclaramento”. (Continua)

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I Komik und Humor [O cômico e o humor], 1898. In: T. Lipps, T. e R. M. Werner, Beiträge zur Ästherik [Escitos sobre estética], v. vi. – Um livro ao qual devo a coragem e também a possibilidade de empreender este trabalho.

2 Über den Witz [Sobre o chiste], 1889.

O objeto da comicidade é o feio: ele tem de ficar visível à luz do dia […]. Assim surge a caricatura.

Libido

FREUD, S., 1856-1939. Psychologie de masse et analyse du moi. Traduit de l’ allemand par Dominique Tassel. Paris: Éditions Points,2014. 178p.

Termo originário da teoria da afetividade. O que chamamos de libido é a energia psíquica considerada sob o ponto de vista quantitativo – mesmo que ainda não possamos medi-la – impulsos que têm a ver com tudo o que possa ser unido sob o termo amor. Aquilo que denominamos como “amor” é, naturalmente, o mesmo que os poetas celebram como amor sexual que tem como objetivo a união dos sexos. Mas, não separemos este tipo de amor de outros amores: amor a si próprio, o amor aos pais, e pelos filhos, a amizade e o amor por todos os homens, em geral, sem esquecer a ligação à objetos concretos e a ideias abstratas relacionadas ao mesmo tema. O trabalho de investigação psicanalítica nos ensinou que, todas essas tendências são a expressão dos mesmos movimentos instintivos que impulsionam as pessoas a se unirem sexualmente, e que, em outras circunstâncias, certamente, desviariam a atenção ou reprimiriam esse desejo sexual, mas, no entanto, manteriam o suficiente de sua natureza original para que sua identidade fosse reconhecida (auto sacrifício, tendência para a aproximação).

O “amor”, com suas múltiplas acepções, constitui uma síntese perfeitamente legítima da criação e o melhor para nós foi usá-la, como base, para nossas discussões e apresentações científicas. Ao tomar esta decisão, a psicanálise provocou uma avalanche de criticas, como se ela fosse culpada de uma inovação sacrílega. E, portanto, não criou uma obra original com esta concepção “ampliada”. O “Éros” do filósofo Platão, autor deste termo, de sua ação e relação com o amor sexual, cobre perfeitamente a energia amorosa, a libido da psicanálise como foi analisada, em detalhe, por Nachmanssohn et Pfiste¹; e quando o apóstolo Paulo celebra o amor acima de todas as coisas, na célebre epístola aos Corintios, incluiu, certamente, a mesma acepção “ampliada²”. Diante do que foi visto, a única coisa que se pode afirmar é que, infelizmente, os homens não levam a sério os grandes pensadores, mesmo quando eles têm muito a ser apreciado.

As pulsões do amor foram denominadas pela psicanálise, a potiori [para o essencial] e a partir de sua origem, [pulsões sexuais]. A maioria das pessoas (cultas) vê este vocábulo com “desprezo”. É inadimissível ter a sexualidade, para a natureza humana, como uma coisa degradante.. Justo é defini-la com expressões mais dignas “Eros” e “erotismo”. Quanto a mim, poderia ter feito o mesmo desde o início dos meus estudos, o que teria me poupado de enfrentar muitos obstáculos por defender ideias não aceitas por opositores. Mas eu não quis, e evitei, sempre que possível, fazer concessões aos pusilâmines. Nunca se sabe onde esse caminho vai chegar; começa-se a ceder sobre o significado das palavras e pouco a pouco, termina-se por ceder sobre a coisa em si. Procurei, mas não encontrei nada que justificasse ter vergonha da sexualidade; a palavra grega “Éros”, hipótese para suavizar o estigma, em última análise, é a tradução da palavra alemã Liebe (“amor”) e, para finalizar, não se deseja fazer concessões.

Vamos partir dessa hipótese acreditando que as relações de amor (ou dizendo melhor, as ligações afetivas), fazem parte da alma das massas. Mas é bom lembrar, também, que não existe consenso entre alguns autores sobre esta conjectura. O que poderia corresponder a ela obviamente está por trás da influência que um indivíduo exerce sobre o outro. Inicialmente, defenderemos o nosso ponto de vista sobre duas ideias simples. A primeira, existe alguma força que assegura a coesão da massa. Porém a que força, senão a de Eros, poderíamos atribuir este serviço, aquele que garante a coesão do mundo? A segunda, tem-se a impressão de que, quando o indivíduo dentro da massa abandona a sua personalidade e se deixa sugerir pelos outros, que o faz porque é necessário estar nela. Em boas relações com eles e não em conflito, então ele pode fazer isso por amor a eles.

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1. Nachmansohn, “La théorie freudienne de la libido , comparée à la doctrine platonicienne de lámour” [“Freuds Libidotheorie, verglichen mit der Eroslehre Platos”], Intern. Zeitschr. F. Psychoanalyse, III, 1915; Pfister, “Platon comme précurseur de la psychanalyse” [“Plato als Vorläufer der Psychoanalyse”], ibid., VII, 1921.

2. “Même si je parlais la langue des hommes e des anges, si je n’avais pas l’amour je serais un airain qui résonne ou une cymbele qui retentit” [I Co 13].

a. Alusão sem dúvida aos últimos versos da Divina Comédia de Dante.

Libido

Uma cultura científica tem a grande vantagem de obrigar o homem a sair de si mesmo para entrar em contato com as coisas.

ESCOLA E PERSONALIDADE INTELECTUAL DE UMA NAÇÃO

BOURDIEU, P., 1930-2002. A economia das trocas simbólicas. Tradução S. Miceli. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. 361p.

A exemplo de numerosos traços pelos quais é possível reconhecer as “escolas” e as “famílias espirituais” de uma mesma sociedade, inúmeras características nacionais da atividade intelectual devem ser referidas às tradições dos sistemas escolares cuja especificidade deriva de uma história nacional particular e, sobretudo, de sua história específica no interior desta história. Na falta de um estudo comparativo da história específica dos diferentes sistemas escolares – história dos esquemas intelectuais (ou então, caso se prefira, dos programas de pensamento patentes e latentes) transmitidos por cada escola de modo implícito ou explícito, em cada época (história dos programas, dos métodos pedagógicos e das condições ecológicas em meio às quais se realiza o ato de ensino, dos tipos e temas de exercício, dos tratados de retórica e estilística etc.) – corre-se o risco de considerar apenas análises parciais que tratam do único exemplo da universidade francesa. Com vistas a explicar traços como o gosto pela abstração ou o culto da proeza e do brilhantismo que se pretende considerar como constitutivos da “personalidade intelectual” da França, será preciso referi-los sempre às tradições específicas do sistema de ensino francês. No final de um estudo onde mostra a extensão da influência exercida pelo pensamento de Aristóteles sobre a literatura francesa do século XVII, Étienne Gilson conclui: “Aos olhos de Aristóteles e dos escolásticos, a abstração constitui o ato próprio do pensamento humano e… se o espírito clássico foi essencialmente generalizador e capaz de abstrair essências, isto deve-se ao fato de que, durante muitos séculos, ensinou-se aos jovens franceses que a própria essência do pensamento reside na capacidade de abstrair e generalizar”²². É o que pretende Renan: “A Universidade da França imitou demais os Jesuítas, suas lengalengas insípidas e seus versos latinos; e por isso lembra demais os mestres de retórica da decadência. O mal francês, qual seja, a necessidade de discursar, a tendência que faz com que tudo degenere em declamação, tudo isso é mantido por uma parte da Universidade que se obstina em desprezar o fundo dos conhecimentos e valorizar tão-somente o estilo e o talento” (24). Renan anuncia a linguagem assumida mais tarde por Durkheim em A Evolução pedagógica na França onde constata que o “ensino pseudo-humanista” dos Jesuítas e “o espírito literário” que o primeiro estimula, constituem um dos fundamentos do temperamento intelectual francês. “Na primeira metade do século XVII, a França protestante estava em vias de realizar o que a Alemanha protestante fez na segunda metade do século XVIII. Daí resultou em todo país um admirável movimento de discussões e pesquisas. Era a época dos Casaubon, dos Scaliger, dos Saumaise. A revogação do Edito de Nantes rompeu com tudo isso e acabou com os estudos de crítica histórica no país. Como só se encorajava o espírito literário, daí resultou uma certa frivolidade. A Holanda e a Alemanha, em parte graças aos nossos exilados, alcançaram o monopólio dos estudos eruditos. Desde então, decidiu-se que a França seria sobretudo uma nação de pessoas dedicadas ao espírito, uma nação que sabe escrever bem, e conversar maravilhosamente, embora inferior no tocante a conhecimento das coisas e exposta a todas as bobagens que só se consegue evitar com a extensão da instrução e a maturidade do juízo” (25). E Renan, bem como Durkheim mais tarde, salienta que “o sistema de educação francesa criado após a Revolução com o nome de ‘Universidade’ deve muito mais aos Jesuítas do que às antigas universidades”, como se pode comprovar através do enfoque a que se submete a matéria literária: “Ela [ a Universidade] enfatiza em demasia a matéria clássica, sem avivá-la com o espírito literário; as formas antigas circulam diariamente e passam de mão em mão, embora haja carência do sentido do belo antigo…; nunca se consegue passar do exercício árido de inteligência a um alimento vital de qualquer homem espiritual… Adquire-se somente uma habilidade singular para o autodisfarce e para disfarçar diante dos outros o vazio do pensamento em meio a uma forma vazia, envolvente e pomposa… Um espírito estreito e formalista é o traço característico do ensino na França” (27). É a linguagem do próprio Durkheim: “De fato, uma cultura científica tem a grande vantagem de obrigar o homem a sair de si mesmo para entrar em contato com as coisas; e por esta via, acaba tomando consciência do estado d dependência em que se encontra em face do mundo que o envolve… Ao contrário, o letrado, o humanista puro, às voltas com os movimentos de seu espírito, não chega a defrontar-se com algo bastante resistente a que possa se ligar e com que se sinta solidário… o que abre as portas a um diletantismo mais ou menos elegante, mas deixa o homem abandonado a si mesmo sem vinculá-lo a nenhuma realidade externa, a nenhuma tarefa objetiva” (28). Tal ensino literário fundado na idéia de uma natureza humana “eterna, imutável, fora do tempo e do espaço, uma vez que a diversidade das condições e dos lugares não chega a afetá-la” imprimiu, segundo Durkheim, sua marca sobre o “temperamento intelectual” dos franceses, inspirando o “cosmopolitismo constitucional”, “o hábito de pensar o homem em termos gerais” (de que “o individualismo abstrato dos homens do século XVIII é uma expressão” bem como “a incapacidade de pensar em algo diverso do abstrato, do geral e do simples”) (29).

Demais, Renan observa de que maneira as condições institucionais, em meio às quais o ensino se desenvolveu após a revolução, contribuíram para reforçar a tendência para a exibição literária” (30). “Duas vezes por semana, durante uma hora, o professor teve que comparecer diante de um auditório composto ao acaso e, quase sempre, em duas aulas sucessivas, formado por pessoas inteiramente diversas. Tinha que falar, sem preocupar-se com as necessidades específicas dos alunos, sem tomar conhecimento do que eles sabem e do que não sabem… As longas deduções científicas, que exigiam uma intricada argumentação, tiveram que ser postas de lado… Se Laplace tivesse ensinado neste tipo de escola, certamente não teria mais do que uma dúzia de ouvintes. Abertos a todos, tornados o teatro de uma espécie de concorrência cujo alvo consiste em atrair e reter o público, o que são os cursos superiores nestas condições? Exposições brilhantes, ‘recitações’ à maneira dos declamadores da decadência romana… A surpresa do alemão que acaba de assistir a esses cursos é muito grande. Chega de sua universidade onde estava acostumado a cercar seu professor de grande respeito. Seu professor é um Hofrath, que encontra o príncipe algumas vezes! É um homem sério que só prefere coisas admiráveis e que se leva muito a sério. aqui tudo é diferente. Aporta batendo que não pára de se abrir e fechar durante todo o curso, um vaivém perene, o ar desligado dos ouvintes, o tom do professor raramente didático e, muitas vezes declamatório, a habilidade para encontrar os lugares-comuns sonoros que não trazem nada de novo mas que conseguem colher infalivelmente sinais de assentimento, tudo isso parece estranho e inaudito³¹.” […]

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²² E. Gilson. La scholastique et l’esprit classique. Les idées et les lettres. Paris. Vrin, 1955. p. 257.

²³ J. R. Pitts. À la recherche de la France. Paris, Seuil, 1963. p. 273.

24. E. Renan. Questions contemporaines. Paris, Calmann-Lévy, s.d., p. 79.

25. E. Renan. Op. cit., p. 80.

26. Ibidem, p. 81, nº 1.

27. Ibidem, p. 277.

28. E. Durkheim. L’ évolution pédagogique en France. Paris, Alcan, t. II, p. 55.

29. Ibidem, t. II, pp. 128-132.

30. Ao tornar o curso ex cathedra a forma de ensino mais prestigiada, o sistema de ensino francês encoraja um certo tipo de obras e um certo tipo de qualidades intelectuais dentre as quais as qualidades de exposição recebem um valor privilegiado. Seria preeciso estudar a questão de saber se uma instituição como a lecture inglesa encontra-se associada a outros hábitos de pensamento e a outros valores.

31. E. Renan. Questions contemporaines, pp. 90-91.

Uma cultura científica tem a grande vantagem de obrigar o homem a sair de si mesmo para entrar em contato com as coisas.

“Consumir”, portanto, significa investir na afiliação social de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade” […]

BAUMAN, Z., 1925-2018. vida para o consumo: transformação das pessoas em mercadorias. Tradução C. A. Medeiros. rio de Janeiro, Zahar, 2008. 199p. (Continuação)

A vocação consumista se baseia, em última instância, nos desempenhos individuais. Os serviços oferecidos pelo mercado que podem ser necessários para permitir que os desempenhos individuais tenham curso com fluidez também se destinam a ser a preocupação do consumidor individual: uma tarefa que deve ser empreendida individualmente e resolvida com a ajuda de habilidades e padrões de ação de consumo individualmente obtidos. Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas obrigações sociais e proteger a auto-estima – assim como serem vistos e reconhecidos por fazerem tudo isso -, consumidores de ambos os sexos, todas as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos.

Pelas mesmas razões (ou seja, pela transferência do tema da”adequação social” à responsabilidade e ao cuidado dos indivíduos), as práticas exclusivistas na sociedade de consumidores são muito mais estritas, duras e inflexíveis do que na sociedade de produtores. Nesta, os homens incapazes de se mostrar à altura e passar no teste que avalia suas capacidades como produtores/ soldados é que são classificados como “anormais” e rotulados de “inválidos”. São em seguida categorizados como objetos ou caso de terapia, na esperança de reajustá-los e trazê-los de volta às fileiras”, ou da política penal, para desencorajá-los de resistir a um retorno ao gradil. Na sociedade de consumidores, os “inválidos” marcados para a exclusão (uma exclusão final, irrevogável, sem apelação) são “consumidores falhos”. De maneira distinta dos considerados inadequados à sociedade de produtores (desempregados e rejeitados pelo serviço militar), não podem ser concebidos como pessoas necessitadas de cuidados e assistência, uma vez que seguir e cumprir os preceitos da cultura de consumo é algo considerado (de modo gritantemente contrafactual) permanente e universalmente possível. POr poder ser adotado e aplicado por qualquer um que o queira (as pessoas podem ser rejeitadas em empregos apesar de terem todos os requisitos necessários, mas, a menos que estejamos falando de uma “ditadura das necessidades” de tipo comunista, não podem ser rejeitadas como consumidoras de uma mercadoria se tiverem dinheiro para pagar o seu preço), acredita-se (mais uma vez contrafactualmente) que obedecer aos preceitos dependa apenas da disposição e do desempenho individuais. Em função desse pressuposto, toda “invalidez social! seguida de exclusão só pode resultar, na sociedade de consumidores, de faltas individuais. Qualquer suspeita da existência de causas “extrínsecas” de fracasso, supra-individuais e arraigadas na sociedade é eliminada logo de início, ou pelo menos posta em dúvida e qualificada como uma defesa inválida.

“Consumir”, portanto, significa investir na afiliação social social de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade”: obter qualidades para as quais já existe uma demanda de mercado, ou reciclar as que já se possui, transformando-as em mercaorias para as quais a demanda pode continuar sendo criada. A maioria das mercadorias oferecidas no mercado de consumo deve sua atração e seu poder de recrutar consumidores ávidos a seu valor de investimento, seja ele genuíno ou suposto, anunciado de forma explícita ou indireta. Sua promessa de aumentar a atratividade e, por conseqüência, o preço de mercado de seus compradores está escrita, em letras grandes ou pequenas, ou ao menos nas entrelinhas, nos folhetos de todos os produtos – inclusive aqueles que, de maneira ostensiva, são adquiridos principalmente, ou mesmo exclusivamente, pelo puro prazer do consumidor. O consumo é um investimento em tudo que serve para o “valor social” e a auto-estima do indivíduo.

O objetivo crucial, talvez decisivo, do consumo na sociedade de consumidores (mesmo que raras vezes declarado com tantas palavras e ainda com menos freqüência debatido em público) não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a comodificação ou recomodificação do consumidor: elevar a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis. É, em última instância, por essa razão que passar no teste do consumidor é condição inegociável para a admissão na sociedade que foi remodelada à semelhança do mercado. Passar no teste é precondição de todas as relações contratuais que tecem a rede de relacionamentos chamada “sociedade de consumidores” e que nela são tecidas. É essa precondição, sem exceção ou possibilidade de recusa, que consolida o agregado das transações de compra e venda numa totalidade imaginada. Ou que, para ser mais exato, permite que esse agregado seja experimentado como uma totalidade chamada “sociedade” – entidade a que se pode atribuir a capacidade de “fazer demandas” e coagir os atores a obedecer – permitindo que se atribua a condição de “fato social” no sentido durkheiminiano.

“Consumir”, portanto, significa investir na afiliação social de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade” […]

É a vida, não a morte, que é um mal

CICÉRON, 106 a. C. – 43 a.C. Devant la mort (1éreTusculane. Traduit du latin par Danièle Robert.Paris; Arléa, 1991. 106p.

– Vejo que você mira muito alto e deseja ir para o céu; quero que nós alcancemos isso. Mas vamos fazer, como pensam os nossos adversários, que a alma não sobrevive após a morte; neste caso, ficaríamos privados da esperança de ter uma vida mais feliz. Como esta ideia pode ser prejudicial?

A alma desaparece quando o corpo fenece; este, conserva a faculdade de sofrer ou, simplesmente, de sentir? Ninguém pode afirmar isto, exceto Epicuro, que sobre este assunto, discordou de Demócrito e fez acusações infundadas, e os discípulos deste último, retrucaram em favor do filósofo. A faculdade de sentir não pode sobreviver no espírito já que este não existe mais; então, onde está o mal, já que não existe um terceiro elemento constitutivo da vida? É verdade que a separação da alma e do corpo acontece sem dor? Se isso é real , não deve durar muito tempo; porém é falso, na minha opinião; a separação acontece, na maioria das vezes, sem que se perceba, algumas vezes com prazer, e dependendo das circunstâncias, completamente, suave como um piscar de olhos.

Isto que nos aflige, ou muitas vezes nos atormenta, é a perda das coisas boas da vida. Mas atenção! Seria mais justo dizer: “De seus maus”. O que eu tenho para lamentar-me da vida? Eu teria portanto o direito, mas de nada adianta aumentar a tristeza, chorando sobre o destino da humanidade quando o que mais desejo é que deixemos de crer que seremos infelizes após a morte. Eu, nos meus escritos, na medida do possível, tentei consolar a mim mesmo. […]

A morte, para falar a verdade, nos livra dos maus e não das coisas boas. Foi sobre isso que Hégésias de Cyrène* escreveu de maneira brilhante na sua obra Apocarteron, o que levou o rei Ptolomeu a proibi-lo de tratar sobre esse assunto durante as aulas que ministrava para os discípulos. Muitos deles se suicidaram após sua preleção sobre esse assunto. Há um epigrama de Calímaco que se refere a Th

Théombrote d’ Ambracia, que após ter lido Fedron, obra de Platão, jogou-se do alto de um penhasco sem ter nenhum motivo real para praticar tal ato insano. A obra de Hégésias tem esse título, Apocarteron, por que seus heróis morrem de inanição e quando questionado pelos seus amigos, que tentam persuadi-los daquela situação, enumeram as dificuldades vividas. Eu poderia fazer o mesmo, menos radicalmente, que eles no entanto, quem pensa que viver não interessa a ninguém; eu não falo pelos outros, mas por mim mesmo, a vida tem alguma atratividade? Pois mesmo que eu tivesse morrido antes de ter sido privado do convívio com a minha família e das honras do forum, é para o mal, de toda maneira, e não para bens, que a morte me teria arrancado.

É a vida, não a morte, que é um mal