FREUD, S., 1856-1939. o chiste e sua relação com o inconsciente [1905]. Tradução F. C. Matos e P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 347p. (Obras completas, v. 7)
A. Parte analítica
[I] Final
[…] O contraste das representações [Vorstellungskontrast] é enfatizado em definições como a de Kraepelin. O chiste seria “a ligação ou conexão arbitrária, em geral com o auxílio da associação de palavras de duas representações de algum modo contrastantes entre si”. Não é difícil para um crítico como Lipps, mostrar a completa insuficiência dessa fórmula. Mas ele próprio não descarta o fator contraste, deslocando-o antes para outro lugar. “O contraste permanece mas ele não é um contraste entendido de um modo ou de outro, entre as representações associadas às palavras, e sim o contraste ou contradição entre o significado e a falta de significado das palavras” (Lipps, p. 87). Exemplos esclarecem como isso deve ser compreendido. “Um contraste surge somente quando […] concedemos um significado às suas palavras que, no entanto, não poderíamos conceder” (p. 90).
A oposição de “sentido e falta de sentido” adquire significado no desenvolvimento ulterior dessa última caracterização. “Aquilo que por um momento havíamos tomado como pleno de sentido mostra-se agora inteiramente sem sentido para nós. Nisso consiste, nesse caso, o processo cômico” (pp. 85 ss.). “Um enunciado parece chistoso quando lhe atribuímos um significado que possui necessidade psicológica e, ao atribuí-lo, voltamos a retirá-lo de imediato. Sob ‘significado’ podem-se entender aí coisas diferentes. Emprestamos um sentido a um enunciado sabendo que ele não podem pertencer-lhe logicamente. Encontramos uma verdade nele que, no entanto, não podemos encontrar quando seguimos as leis da experiência ou os hábitos universais do nosso pensamento. Nós lhe concedemos uma consequência lógica ou prática que vai de seu conteúdo verdadeiro, para, tão logo enxerguemos a natureza mesma do enunciado, negar justamente essa consequência. Em cada caso, o processo psicológico que o enunciado do chiste desperta em nós, e no qual se baseia o sentimento de comicidade, consiste na passagem imediata daquele emprestar sentido, tomar por verdadeiro, admitir consequências, à consciência ou impressão de uma relativa nulidade.”
Por mais penetrante que essa argumentação pareça, poder-se-ia perguntar aqui se a oposição do pleno de sentido ao sem sentido, na qual se baseia o sentimento de comicidade, também contribui para a determinação conceitual do chiste enquanto distinto do cômico.
O fator da “estupefação aclaramento” também aprofunda o problema da relação do chiste com a comicidade. A respeito do cômico em geral, Kant diz que é uma característica notável do mesmo a de iludir-nos apenas por um momento. Heymans explica como o efeito de um chiste se produz pela sequência de estupefação e aclaramento.³ Ele ilustra a sua afirmação com um ótimo chiste de Heine, em que um de seus personagens, o pobre agente de loteria Hirsch-Hyacinth, se gaba de ter sido tratado pelo grande barão de Rothschild como um semelhante, de modo inteiramente familionário. A palavra portadora do chiste parece aí, num primeiro momento, uma formação equivocada, algo incompreensível, inconcebível, enigmático. Com isso ela produz espanto. A comicidade se dá com a dissolução da estupefação, com a compreensão da palavra. Lipps acrescenta que a esse primeiro estágio do aclaramento – a compreensão de que a palavra causadora de espanto significa isso e aquilo -se segue um segundo estágio, no qual se entende que essa palavra nos tinha primeiro espantado e, então, fornecido o sentido correto. Somente esse segundo esclarecimento, isto é, a compreensão de que uma palavra sem sentido segundo o uso comum da linguagem era a responsável pela graça do chiste – esta dissolução do nada -, é que produz a comicidade (Lipps, p. 85).
Independentemente de qual dessas duas visões nos pareça mais elucidativa, através das explicações sobre estupefação e aclaramento nos aproximamos de uma melhor compreensão. Se, de fato, o efeito cômico do familionário de Heine se baseia na dissolução da palavra aparentemente sem sentido, então o “chiste” pode ser vinculado à formação dessa palavra e à natureza da palavra assim formada.
Sem nenhuma conexão com os pontos de vista tratados por último, há uma outra particularidade do chiste que é reconhecida por todos os autores como essencial a ele, “A brevidade é o corpo e a alma do chiste; é o chiste ele mesmo”, diz Jean Paul, (4) apenas modificando com isso uma fala do velho tagarela Polônio, no Hamlet de Shakespeare (ato II, cena 2): *
Therefore, since brevity is the soul of wit
And tediousness the limbs and outward flourisher
I will be brief
[Porque a brevidade é a alma do chiste,
E a prolixidade, o corpo e ornamento do chiste,
Serei breve].
É significativa, pois, a descrição do chiste feita por Lipps. ” O chiste diz o que tem a dizer sem sempre em poucas, mas sempre em palavras de menos, isto é, em palavras que, segundo uma lógica estrita ou o modo comum de pensar e falar, não seriam suficientes para dizê-lo. No fim das contas, ele pode inclusive dizer o que tem a dizer silenciando” (Lipps, p. 90).
Já aprendemos, na vinculação do chiste com a caricatura, que “o chiste tem de fazer aparecer algo oculto ou escondido” (K. Fischer, p. 51). Eu enfatizo novamente essa definição porque ela também tem mais a ver com a natureza do chiste do que com o seu pertencimento à comicidade.
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³ Zeitschrift für Psychologie [Revista da psicologia], v. XI, n. 86.
4. Vorschule der Ästhet [Propedêutica à estética], v. I, § 45.
*A citação é dada aqui no original inglês, mas Freud cita a tradução alemã de Schlegel: Weil Kürze dann des Witzes Seele ist,/ Weitschweifigkeit der leib und äussere Zierat,/ Fass’ ich mich kurz”.
[As notas chamadas por asterisco e as interpolações às notas do autor são sempre numeradas.]