COELHO, F., 1983-. Sargaço: a história de um Mundo-Navio. São Paulo: Giostri, 2022. 190p
Descalço, correu o mais rápido que pôde, ziguezagueando entre as pitangueiras, saltando os abacaxis, assustando as galinhas.
Desta vez, ganhou a corrida; a chuva forte bateu nas folhas das árvores no momento em que colocou o pé na escada que leva aos deques inferiores. Parou momentaneamente, olhou para trás e sorriu, antes de iniciar a descida.
Saltava de dois em dois degraus, impaciente. Tentava adivinhar o que sua mãe havia preparado para a janta.
“Uma moqueca?”, pensou.
Os pés de jaca da popa estavam carregados do seu fruto generoso e ele tinha visto seu Isaac mais cedo saindo da moenda, carregando uma garrafa de dendê. Moqueca de jaca era prato de festa, e o dia, comum, então, a chance de esse ser o cardápio era pequena.
Não conseguia evitar: sempre que sentia fome, pensava na sua comida preferida.”Deque 14″ – informava uma pequena placa desgastada que cruzara. O número quatro Já havia sido retocado algumas vezes.
Há quase um século, este fora um grande navio de cruzeiro. Ele deslizava pelos mares cheios e pessoas aproveitando suas férias.
As companhias que os encomendavam excluíam o deque número 13 para afastar qualquer receio de clientes supersticiosos. O tempo passou, muita coisa aconteceu e, ao longo das décadas, o deque 13 ressurgiu e desapareceu em um dilema intermitente entre o augúrio do número e a praticidade de uma sequência ininterrupta. A questão se inflamava ou não em função de presságios sinistros ou períodos de tranquilidade.
Léo passou do deque 14 direto para o12.
Ao avistar o número 11, deixou a escada e seguiu pelo longo corredor, na direção oposta à que correra no alto.
Sentiu o chão se mover levemente sob seus pés. Na ponte, devem ter acionado os motores para reposicionar o navio face à perturbação meteorológica.
Continuou, avistando a última porta à esquerda, a da sua casa, aberta. Ela dava para a cozinha e,logo ao entrar, viu sua mãe com as mãos dentro de uma tigela, esfarelando farinha de tapioca.
Ela imediatamente gritou:
-Limpa os pés antes de entrar em casa, menino! E vai tomar banho que, daqui a pouco, a janta sai!
Léo prontamente obedeceu. O jantar ia ser beiju.
*****
Saiu do chuveiro, viu as roupas de trabalho da mãe sujas de terra. Era domingo, dia de descanso, mas ela era a chefe dos incansáveis das diversas lavouras e culturas presentes no navio. Desceu a escada para a cozinha, abriu o armário dos pratos e foi ajudar a colocar a mesa.
– Bença, mainha? – cumprimentou.
– Deus te abençoe. Tava aonde a tarde toda? – Iraci perguntou, polvilhando o pó branco na chapa quente.
- -Na roça da popa. Acho que as formigas fizeram um formigueiro fora da terra, numa fresta no canto da casa de farinha.
-Vixe! Amanhã vejo isso! Vou falar com Isaac pra trazer manipuera do congelador e…
Pausou por um instante, olhou desconfiada para o filho e perguntou:
-Tava comendo as pitangas de novo?!
Léo sentou-se à mesa e olhou para o prato, antes de responder baixinho:
-Comi só uma…
Iraci, em tom decepcionado:
-Menino! É pra deixar pros outros também!
-Desculpa, não faço mais – sem nenhuma convicção.
-Ninguém viu né? Se tivessem visto, você ia levar outra bronca!
Léo levantou o rosto com um ar de receio e disse:
-Não! Ninguém viu! Tava sozinho lá em cima, tava um calor danado e não passou ninguém a tarde toda.
-Tava todo o mundo no teatro, na reunião. Até seu avô foi lá opinar; daqui a pouco ele chega. Te falei ontem! Eu não fui porque tinha pepino pra resolver na hidroponia; passei a tarde ajeitando os canos do arroz. Você não foi? Abandonou seus brothers? – a mãe indagou em tom irônico.
-Não queria ir- respondeu Léo, cabisbaixo e taciturno.
O silêncio reinou por alguns instantes. Iraci perdeu-se em seus pensamentos. Só se ouvia o chiado da chuva que persistia e da tapioca que aglutinava
na chapa.
*****
Estavam sentados à mesa. Léo espalhava manteiga de castanha-de-caju no seu beiju quando ouviram um impacto na varanda.
“Pa-dum!”
Era Bolota, o gato, que saltara da balaustrada para o piso. Olhava para eles sacudindo sua pata molhada.
Iraci, sorrindo, disse:
-Sempre sutil, esse gato.
Outro ruído chamou a atenção deles. Um arrastar de sandálias se aproximava lentamente pelo corredor. Reconheciam de longe o passocaracterístico de seu Kaique, pai de Iraci e avô de Léo.
O menino tinha acabado de dar uma mordida no beiju. Mãe e filho ficaram ali, imóveis, quase que apreensicos, enquanto os chinelos se aproximavam mais e mais, vagarosamente. Léo tinha o pescoço torcido; a porta estava atrás dele.
Finalmente, um rosto acobreado se insinuou de soslaio, seguido pelo corpo curvado que o sustentava.
-Oi, gente Que chuva boa, hein? – disse o ancião, sorrindo.
– Voinho¹ Vem comer! Tem beiju¹
– Oi, pai! Tudo bem? Tava na reunião?
Seu Kaique, à segunda questão:
-Tava…
Puxou uma cadeira, sentou-se à mesa de jantar e respondeu à primeira em tom grave:
-Vamos dizer que sim.
Bolota, que esperava ansiosamente este momento habitual, pulou no seu colo e lá instalou-se.