Pedindo a palavra

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 349p.

Um olhar sobre o Estado. O caráter demagógico e a intenção de influir sobre as massas são comuns a todos os partidos políticos atuais: por causa dessa intenção, todos são obrigados a transformar seus princípios em grandes afrescos de estupidez, pintando-os nas paredes. Nisso já não há o que fazer, é inútil erguer um só dedo contra isso; pois nesse âmbito vale o que afirmou Voltaire: quand la populace se mêle de raisonner, tout est perdu [ quando o populacho se mete a raciocinar, tudo está perdido]. (144) Desde que isso aconteceu, é preciso adaptar-se às novas condições, assim como nos adaptamos quando um terremoto muda as velhas fronteiras e os contornos do solo e altera o valor da propriedade. Além do mais, se em toda política a questão é tornar a vida suportável para o maior número de pessoas, que esse maior número defina o que entenda por uma vida suportável; se confiam que o seu intelecto achará também os meios certos para alcançar este fim, de que serve duvidar disso? Eles querem ser os forjadores da própria felicidade ou infelicidade; e, se este sentimento de autodeterminação, o orgulho pelas cinco ou seis noções que a sua mente abriga e manifesta, realmente lhes torna a vida agradável a ponto de suportarem com gosto as fatais conseqüências de sua estreiteza: então não há muito a objetar, desde que a estreiteza não vá ao cúmulo de exigir que tudo deve se tornar política nesse sentido, que todos devem viver e agir conforme esse critério. Pois antes de mais nada é preciso permitir a alguns, mais do que nunca, que se abstenham da política e se coloquem um pouco à parte: a isso também os impele o prazer da autodeterminação, e também algum orgulho que talvez derive do fato de calar, quando falam muitos ou mesmo apenas muitos. Depois é preciso perdoar esses poucos, se eles não levarem muito a sério a felicidade dos muitos, sejam povos ou camaradas da população, e vez por outra incorrerem numa atitude irônica; pois sua seriedade reside em outro canto, sua felicidade é um outro conceito, seu objetivo não pode ser abarcado por uma mão canhestra que dispõe de apenas cinco dedos. Por fim, de quando em quando chega – o que sem dúvida é o mais difícil de lhes conceder, mas tem de lhes ser concedido – um instante em que eles saem de seu taciturno isolamento e de novo experimentam a força de seus pulmões: então gritam uns para os outros, como gente perdida numa floresta, para se dar a conhecer e se encorajar mutuamente; e é, certo que então se ouvem coisas que soam mal aos ouvidos para os quais não foram dirigidas – Logo depois faz-se um novo silêncio na floresta, tanto silêncio que de novo se escuta claramente o zumbido, o sussurro e o bater de asas dos incontáveis insetos que vivem no seu interior e também acima e abaixo dela.

Pedindo a palavra

Do novo ídolo: Eu, o Estado, sou o povo!

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução M. da Silva.  14.ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.  381p.

Ainda há povos e rebanhos, em algum sítio, mas não entre nós, meus irmãos: aqui, há Estados.

Estado? Que é isto? Pois seja! Abri bem os ouvidos, porque, agora, vou dizer-vos a minha palavra sobre a morte dos povos.

Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda a frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca: “Eu, o Estado, sou o povo!”

É mentira! Criadores, foram os que formaram os povos e suspenderam por cima deles uma fé e um amor; assim serviram a vida.

Destruidores, são os que preparam armadilhas para muitos e as chamam Estado; e suspendem por cima deles uma espada e cem cobiças.

Onde ainda existe povo, este não compreende o Estado e o odeia como má sorte e uma ofensa aos costumes e à justiça.

Esta indicação eu vos dou: cada povo fala a sua língua do bem e do mal e não entende o vizinho. Cada povo inventou a sua própria língua, segundo os costumes e a justiça.

Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e, qualquer coisa que diga, mente – e, qualquer coisa que possua, roubou-a.

Nele, tudo é falso. Morde com os dentes roubados, esse mordedor; falsas são, até, suas entranhas.

Confusão de línguas do bem e do mal: esta indicação eu vos dou como marca do Estado. Essa marca, na verdade, significa vontade de morte! Na verdade, ela chama os pregadores da morte!

Nasce gente demais; para os supérfluos, inventou-se o Estado!

Vede como ele os atrai a si, aos muitos-demais! Como os devora e mastiga e rumina!

“Nada há na terra maior do que eu;  eu sou o dedo ordenador de Deus” – assim urra o monstro. E não somente aqueles de orelhas compridas e vista curta se põem de joelhos!

Ah, também a vós, ó grandes almas, ele cochicha suas torvas mentiras! ah, como adivinha os corações ricos, que gostam de prodigalizar seus tesouros!

Sim, também a vós ele adivinha, ó vencedores do velho Deus! Ficastes cansados na luta e, agora, o vosso cansaço ainda serve o novo ídolo!

De heróis e homens honrados, desejaria rodear-se o novo ídolo! Como gosta de aquecer-se – o frio monstro, ao sol das consciências tranqüilas!

Tudo quer dar-vos, o novo ídolo, se vós o adorais:  assim compra para si o brilho da vossa virtude e o olhar dos vossos olhos altaneiros.

Qual isca, ele vos quer, para apanhar os muitos-demais! Sim, um ardil infernal foi, destarte, inventado, um cavalo de morte, retinindo no jaez de divinas honrarias!

Sim, uma morte para muitos foi, destarte, inventada, que se apregoa por vida: na verdade, um serviço de amigo para todos os pregadores da morte.

Estado, chamo eu, o lugar onde todos, bons ou malvados, são bebedores de veneno; Estado, o lugar onde todos, bons ou malvados, se perdem a si mesmos; Estado, o lugar onde o lento suicídio de todos chama-se – “vida”!

Olhai esses supérfluos! Roubam para si as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; “cultura” chamam a seus furtos – e tudo se torna, neles, em doença e adversidade!

Olhai esses supérfluos! Estão sempre enfermos, vomitam fel e lhe chamam “jornal”. Devoram-se uns aos outros e não podem, sequer, digerir-se.

Olhai esses supérfluos! Adquirem riquezas e, com elas, tornam-se mais pobres. Querem o poder e, para começar, a alavanca do poder, muito dinheiro – esses inteligentes!

Olhai como sobem trepando, esses ágeis macacos! Sobem trepando uns por cima dos outros e atirando-se mutuamente, assim, no lodo e no abismo.

Ao trono, querem, todos, subir: é essa a sua loucura – como se no trono estivesse sentada a felicidade! Muitas vezes, é o lodo que está no trono – e, muitas vezes, também o trono no lodo.

Dementes, são todos eles, para mim, e macacos sobreexcitados. Mau cheiro exala o seu ídolo, o monstro frio; mau cheiro exalam todos eles, esses servidores de ídolos!

Porventura, meus irmãos, quereis sufocar nas exalações de seus focinhos e de suas cobiças? Quebrai, de preferência, os vidros das janelas e pulai para o ar livre!

Fugi do mau cheiro! Fugi da idolatria dos supérfluos!

Fugi do mau cheiro!  fugi da fumaça desses sacrifícios humanos!

Também agora, ainda a terra está livre para as grandes almas. Vazios estão ainda, para a solidão a um ou a dois, muitos sítios, em torno dos quais bafeja o cheiro de mares calmos.

Ainda está livre, para as grandes almas, uma vida livre.  Na verdade, quem pouco possui, tanto menos pode tornar-se possuído: louvada seja a pequena pobreza!

Onde cessa o Estado, somente ali começa o homem que não é supérfluo, ali começa o canto do necessário, essa melodia única e insubstituível.

Onde o Estado cessa –  olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e as pontes do super-homem? –

        Assim falou Zaratustra.

Do novo ídolo: Eu, o Estado, sou o povo!

Educação

PLATÃO, 427-347 a.C.  O mito da caverna*; tradução Edson Bini.  São Paulo: Edipro, 2015.  78p.

 Sócrates

Em seguida compara o efeito da educação e da sua falta na nossa natureza a uma experiência como a seguinte: imagina seres humanos habitando uma espécie de caverna subterrânea, com uma longa entrada acima aberta para a luz e tão larga como a própria caverna. Estão ali desde a infância, fixados no mesmo lugar, com pescoços e pernas sob grilhões, unicamente capazes de ver à frente, visto que seus grilhões os impedem de virar suas cabeças. Imagina também a luz de uma fogueira acesa a certa distância, acima e atrás deles. Também atrás deles, porém num terreno mais elevado, há uma vereda que se estende entre eles e a fogueira. Imagina que foi construído ao longo dessa vereda um muro baixo, como o anteparo diante de manipuladores de marionetes acima do qual eles os exibem.

Gláucon

Eu o estou imaginando.

Sócrates

[…] E se houvessem honras, louvores ou prêmios entre eles para aquele que se revelasse o mais hábil na identificação das sombras à medida que se projetassem e quem melhor se lembrasse quais geralmente se antecipavam, quais se apresentavam mais tarde e quais simultaneamente e quem pudesse, assim, melhor prever o futuro, acha que nosso homem desejaria essas recompensas ou invejaria aqueles entre os prisioneiros que fossem objeto das honras e que fossem transformados em senhores? Ou será que, ao contrário, não partilharia do sentimento de Homero, preferindo trabalhar o solo como servo de um outro homem, alguém sem posses¹, e padecer quaisquer sofrimentos do que partilhar das opiniões deles e viver como vivem?

Pois considera também isto: se esse homem descesse ao interior da caverna novamente e reassumisse seu antigo posto, seus olhos – privados assim repentinamente da luz do sol – não ficariam repletos de escuridão?

Toda essa imagem, Gláucon, deve ser aplicada ao que dissemos anteriormente. A região visível deveria ser comparada à morada, que é a prisão e a luz da fogueira nela ao poder do sol. E se interpretares a subida e o exame das coisas acima como a ascensão da alma à região inteligível, terás captado o que espero transmitir, uma vez que isso é o que querias ouvir. Se isso é verdadeiro ou não, só o deus² o sabe. De qualquer modo, eu o vejo assim: no domínio do reconhecível, a Ideia do bem é a última coisa a ser vista, sendo atingida somente com dificuldade; entretanto, uma vez que alguém a tenha contemplado, será necessário concluir que é a causa de tudo o que é correto e belo em quaisquer coisas, que produz tanto a luz quanto sua fonte na região visível e que na região inteligível comanda e gera verdade e entendimento, de sorte que todos que se predispõem a agir com sensatez privada ou publicamente têm dela percepção³.

E quando ao que sucede quando alguém se volta da especulação divina para as misérias da vida humana? Achas que é surpreendente que, estando ainda sua visão turva e não tendo ele ainda se acostumado com a escuridão ao seu redor, se comporte desajeitadamente e pareça totalmente ridículo se for constrangido, seja nos tribunais, seja em outra parte, a polemizar sobre as sombras da justiça ou sobre as estátuas que projetam as sombras e a disputar sobre as maneiras pelas quais essas coisas são compreendidas por pessoas que jamais contemplaram a justiça mesma?

Gláucon

Nada há de surpreendente nisso.

Sócrates

De fato não há. Mas toda pessoa detentora de algum senso se lembraria de que os olhos podem se confundir de dois modos e devido a duas causas, nomeadamente:

Quando saem da luz para ingressar na escuridão e quando emergem da escuridão para ingressar na luz. Compreendendo que o mesmo se aplica à alma, quando alguém nota uma alma perturbada e incapaz de ver alguma coisa, não desatará a rir insensatamente, mas investigará se ela saiu de uma vida mais resplandecente e se encontra fragilizada por não ter ainda se habituado à escuridão, ou se saiu de uma ignorância para uma luz maior e está ofuscada pelo aumento do brilho. E então ele declarará a primeira alma como feliz em sua experiência e vida e lamentará a segunda; mas mesmo que ele se disponha a se divertir à custa dela, ao menos se revelaria menos ridículo do que se ridicularizasse uma alma que veio da luz superior.

Se isso for verdadeiro, eis então o que devemos pensar sobre tais matérias: a educação não é o que alguns indivíduos proclamam ser ela, a saber, inserir conhecimento em almas que dele carecem, como inserir em olhos cegos.

Mas nossa atual discussão, por outro lado, demonstra que o poder do aprendizado está presente na alma de todos e que o instrumento do aprendizado de cada um é como um olho que não é capaz de ser girado da escuridão para a luz sem que se gire o corpo inteiro. Esse instrumento não pode ser girado a partir do que está vindo ao ser (do que está sendo gerado) sem efetuar uma conversão da alma inteira até que essa se capacite a investigar o ser e o mais resplandecente ente os seres particulares, a saber, aquele que chamamos de o bem. Não é mesmo?

A conclusão é que a educação é a arte que diz respeito exatamente a isso, a essa conversão, e a como pode a alma mais fácil e eficientemente ser levada a realizá-la. Não é a arte de introduzir visão na alma. A educação tem como certo que a visão já está presente na alma, mas essa não a dirige corretamente e não arroja o seu olhar para onde deveria; trata-se da arte de redirigir a visão adequadamente. […]

E quanto aos não educados que não têm conhecimento da verdade? Não é provável, ou melhor, não se conclui necessariamente do que dissemos antes que jamais governarão adequadamente um Estado? Mas, tampouco, o farão aqueles aos quais foi permitido passar suas vidas inteiras sendo educados. Os primeiros falhariam porque não possuem uma meta única necessariamente visada por todos suas ações privadas e públicas; os segundos falhariam porque se recusariam a agir, no pensamento de que se haviam instalado enquanto ainda vivos nas longínquas Ilhas dos Abençoados.

Observa, assim, Gláucon, que não estaremos cometendo uma injustiça contra aqueles que se tornaram filósofos em nosso Estado e que aquilo que a eles diremos quando os constrangermos a guardar e zelar pelos outros será justo. […] fizemos de vós reis em nosso Estado e, por assim dizer, condutores da colmeia, tanto para vós mesmos quanto para o resto dos integrantes do Estado. Sois melhor e mais plenamente educados do que os outros e detendes melhor aptidão para partilhar de ambos os estilos de vida. Por conseguinte, cada um de vós, alternadamente, tem de se rebaixar para viver na morada comum dos outros e vos habituar a enxergar no escuro. E quando vos habituardes, vossa visão se revelará enormemente superior àquela dos indivíduos que aí vivem. E porque vistes a verdade sobre as coisas belas, justas e boas, sabereis o que cada imagem é e do que é ela uma semelhança. Assim, em vosso e nosso favor, o Estado será governado não como a maioria dos Estados atualmente [como num sonho], por pessoas que combatem sombras e lutam entre si para governar – como se isso fosse um grande bem -, mas por pessoas que estão despertas e não sonhando. […]

É assim que é. Se puderes descobrir uma forma de vida que para os governantes vindouros seja melhor do que governar [do que o próprio poder], teu Estado bem governado se tornará uma possibilidade, porque nele somente os verdadeiramente ricos governarão – não aqueles que são ricos em ouro, mas aqueles que são abastados na riqueza necessária aos felizes, a saber, uma vida boa e sábia. Mas se mendigos famintos de bens pessoais ingressem na vida pública imbuídos do pensamento de que os bens ali se encontram para que sejam apanhados, então o Estado bem governado será impossível, pois o governar será objeto de contenção, e esta guerra civil e doméstica destrói essas pessoas e também o resto do Estado. […]

¹ Odisseia, XI, 489-90.

² Difícil saber com exatidão a quem Sócrates se refere. Provavelmente é ao seu dáimon particular, mas pode também ser ao deus do oráculo de Delfos, Apolo.

³ Ou seja, percepção da Forma (Ideia) do bem.

* O Mito da Caverna está inserido no Livro VII da obra A República. Nesse livro, Platão dá voz ao diálogo entre Sócrates e Gláucon. (N.E)

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