Do puro devir

 

DELEUZE, G., 1925-1995. Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Fortes. 5. ed.  São Paulo: Perspectiva, 2015.  342p.

Primeira série de paradoxos

Alice assim como Do outro lado do espelho tratam de uma categoria de coisas muito especiais: os acontecimentos, os acontecimentos puros. Quando digo “Alice cresce”, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela se torna menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à essência  do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar menor e inversamente.O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo.

Platão convidava-nos a distinguir duas dimensões: 1º)a das coisas limitadas e medidas, das qualidades fixas, quer sejam pertencentes ou temporárias, mas supondo sempre freadas assim como repousos, estabelecimentos de presentes, designações de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal pequenez em tal momento;  2º) e, ainda, um puro devir sem medida, verdadeiro devir-louco que não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado e o insuficiente na simultaneidade de uma matéria indócil (“mais quente e mais frio vão sempre para a frente e nunca permanecem, enquanto a quantidade definida é ponto de parada e não poderia avançar  sem deixar de ser; “o mais jovem torna-se mais velho do que o mais velho, e o mais velho, mais jovem do que o mais jovem, mas finalizar este devir é o de que eles não são capazes, pois se o finalizassem não mais viriam a ser, mas seriam…”)¹.

Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é, em absoluto, a do inteligível e a do sensível, da Idéia e da matéria, das Idéias e dos corpos. É uma dualidade mais profunda, mais secreta, oculta nos próprios corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Idéia e o que subtrai a esta ação. Não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros. O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação da Idéia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia. As coisas medidas acham-se sob as Idéias; mas debaixo das próprias coisas não haveria ainda este elemento louco que subsiste, que  “sub-vem”, aquém da ordem imposta pelas Idéias e recebida pelas coisas?  Ocorre até mesmo a Platão perguntar se este puro devir não estaria numa relação muito particular com a linguagem:  tal nos parece um dos sentidos principais do Crátilo. Não seria talvez esta relação essencial à linguagem, como em um “fluxo” de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter? Ou então, não designando as paradas e repousos  que recolhem a ação das Idéias e os outros exprimindo os movimentos ou os devires rebeldes?² Ou ainda, não seria duas dimensões distintas interiores à linguagem em geral, uma sempre recoberta pela outra, mas  continuando a “sub-vir”  e a substituir sob a outra?

O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (por exemplo, o momento em que começa o demasiado),  mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado (“não segure um tição vermelho durante demasiado tempo, ele o queimaria; não se corte demasiado profundamente, isso faria você sangrar”). Daí as inversões que constituem as aventuras de Alice. Inversão do crescer e do diminuir; “em que sentido, em que sentido?” pergunta Alice, pressentindo que é sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de tal forma que desta vez ela permanece igual, graças a um efeito de óptica. Inversão de véspera e  amanhã, o presente sendo sempre esquivado: “geléia na véspera e no dia seguinte, nunca hoje”. Inversão do mais e do menos: cinco noites são cinco vezes mais quentes do que uma só, “mas deveriam ser também cinco vezes mais frias pela mesma razão.” Do ativo e do passivo: “será que os gatos comem os morcegos?” é o mesmo que “será que os morcegos comem os gatos?”. Da causa e do efeito:  ser punido antes de ter cometido a falta, gritar antes de se machucar, servir antes de repartir.

Todas essas inversões, tais como aparecem na identidade pessoal de Alice, a perda do nome próprio. A perda do nome próprio é a aventura que se repete através de todas as aventuras de Alice. Pois o nome próprio ou singular é garantido pela permanência de um saber. Esse saber é encarnado em nomes gerais que designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com os quais o próprio conserva uma relação constante.  Assim, o eu pessoal tem necessidade de Deus e do mundo em geral.  Mas quando os substantivos e adjetivos começam a fundir,  quando os nomes de parada e repouso são  arrastados pelos verbos de puro devir e deslizam na linguagem  dos acontecimentos, toda a identidade se perde para o eu,  o mundo e Deus. É a provação do saber e da declamação, em que as palavras vêm enviesadas, empurradas de viés pelos verbos, o que destitui Alice de sua identidade. Como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da linguagem. Pois a incerteza pessoal não é uma dúvida exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva   do próprio acontecimento, na medida  em que sempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.

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¹ Platão. Filebo, 24 d; Parmênides, 154-155.

²  Platão. Crátilo. 437 e ss.  Sobre tudo o que precede, cf. Apêndice I.

Do puro devir