O ópio do povo

VARGAS L., M., 1936-. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura.  Tradução Ivone Benedetti.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.  207p.

Ao contrário do que imaginavam os livres-pensadores, agnósticos e ateus dos séculos XIX e XX, na era pós-moderna a religião não está morta e enterrada nem foi posta no desvão das coisas imprestáveis: está viva e ativa, ocupando um lugar central na atualidade.

Não há como saber, evidentemente, se o fervor dos crentes e praticantes das diversas religiões existentes no mundo aumentou ou diminuiu. Mas ninguém pode negar a presença que o tema religioso tem na vida social, política e cultural contemporânea, provavelmente igual ou superior à que tinha no século XIX, quando as lutas intelectuais e cívicas favoráveis ou contrárias ao laicismo eram preocupação central em grande número de países de ambos os lados do Atlântico.

Para começar, o grande protagonista da política atual, o terrorista suicida, visceralmente ligado à religião, é um subproduto da versão mais fundamentalista e fanática do islamismo. O combate da Al-Qaeda e seu líder, o finado Osama bin Laden, não devemos esquecer, é acima de tudo religioso, ofensiva purificadora contra os maus mulçumanos e renegados do islã, assim como contra os infiéis, nazarenos (cristãos) e degenerados do Ocidente encabeçados pelo Grande  Satã, os Estados  Unidos. No mundo árabe a confrontação que mais violências gerou tem caráter inequivocamente religioso, e o terrorismo islamita fez até agora mais vítimas entre os próprios mulçumanos que entre os seguidores de outras religiões. Principalmente se levarmos em conta o número de iraquianos mortos ou mutilados por obra dos grupos extremistas xiitas e sunitas, bem como os assassinados no Afeganistão pelos talibãs, movimento fundamentalista nascido nos madraçais ou escolas religiosas afegãs e paquistaneses, que, assim como a Al- Qaeda, nunca vacilou em assassinar muçulmanos que não compartilhem seu puritanismo fundamentalista.

As divisões e os conflitos diversos que percorrem as sociedades muçulmanas não contribuíram em nada para atenuar a influência da religião na vida dos povos, e sim para exacerbá-la. Em todo o caso, não é o laicismo que ganhou terreno; ao contrário, em países como o Líbano e a Palestina, os focos laicistas encolheram nos últimos anos com o crescimento, com forças políticas,  do Hezbolá (“Partido de  Deus”) libanês e do Hamás, que obteve o controle da Faixa de Gaza em eleições limpas. Esses partidos, assim com o Jihad Islâmico da Palestina, têm origem fundamentalmente religiosa. E, nas primeiras eleições livres realizadas na história da Tunísia e do Egito, a maioria dos votos favoreceu os partidos islâmicos (mais moderados).

Enquanto isso ocorre no seio do islamismo, não se pode dizer que a convivência entre as diversas denominações, igrejas e seitas cristãs seja sempre pacífica. Na Irlanda do Norte a luta entre a maioria protestante e a minoria católica, agora interrompida (oxalá para sempre), deixou uma espantosa quantidade de mortos e feridos pelas ações criminosas dos extremistas de ambos os lados. Também nesse caso o conflito político entre unionistas e independentistas foi acompanhado por um antagonismo religioso simultâneo e mais profundo, como entre as facções adversárias do islã.

O catolicismo vive grandes conflitos em seu seio. Até há alguns anos, o mais intenso era entre os tradicionalistas e os progressistas promotores da Teologia da Libertação, luta que, depois da entronização de dois pontífices da linha conservadora – João Paulo II e Bento XVI – parece ter-se resolvido, por enquanto, com o encurralamento (não a derrota) desta última tendência. Agora, o problema mais agudo enfrentado pela Igreja católica é a revelação de uma poderosa tradição de violações e pedofilia em colégios, seminários, albergues e paróquias, truculenta realidade sugerida havia anos por indícios e suspeitas que, durante muito tempo, a Igreja conseguiu silenciar. Mas, nos últimos anos, em vista de ações e denúncias judiciais das próprias vítimas, esses abusos sexuais foram vindo à tona em tão grande número que não se pode falar de casos isolados, mas sim de práticas muito disseminadas no espaço e no tempo. O fato provocou arrepios no mundo inteiro, sobretudo entre os próprios fiéis. O aparecimento de testemunhos de milhares de vítimas em quase todos os países católicos levou a Igreja em certos lugares, como a Irlanda e os Estados Unidos, à beira da falência em vista das elevadíssimas somas que se viu obrigada a gastar na defesa perante os tribunais ou no pagamento por danos e prejuízos causados às vítimas de violações e maus-tratos sexuais cometidos por sacerdotes. Apesar de seus protestos, está evidente que pelo menos parte da hierarquia eclesiástica – as acusações nesse sentido atingiram o próprio pontífice – foi cúmplice dos religiosos pedófilos e violadores, protegendo-os, negando-se a denunciá-los às autoridades e limitando-se a mudá-los de lugar, sem os afastar de suas tarefas sacerdotais, entre as quais o ensino de menores. A severíssima punição por parte do  XVI dos Legionários de Cristo, declarando sua reorganização integral, e de seu fundador, o padre Marcial Maciel, mexicano, bígamo, incestuoso, vigarista, estuprador de meninos e meninas, inclusive de um de seus próprios filhos – personagem que parece saído dos romances do marquês de Sade -, não dissipa as sombras que tudo isso lançou sobre uma das mais importantes religiões do mundo.
Todo esse escândalo contribuiu para reduzir a influência da Igreja católica? Eu não me atreveria a afirmá-lo. É verdade que em muitos países fecham-se seminários por falta de noviços, e que, em comparação com o que ocorria antes, esmolas, doações, heranças e legados que a Igreja recebia diminuíram. Mas, num sentido não numérico, seria possível dizer que as dificuldades aguçaram a energia e a militância dos católicos, que nunca estiveram mais ativos em suas campanhas sociais manifestando-se contra casamentos gays, legalização do aborto, práticas anticoncepcionais, eutanásia e laicismo. Em países como a Espanha a mobilização católica – tanto na hierarquia como das organizações seculares da Igreja -, de impressionante amplitude, em alguns momentos atinge tal virulência que de modo algum se poderia considerar tratar-se de uma Igreja em retirada ou com a corda no pescoço. O poder político e social, exercido na maior parte dos países latinos-americanos pela Igreja católica, continua incólume, e a isso se deve o fato de, em matéria de liberdade sexual e da liberação da mulher, os avanços serem mínimos. Na grande maioria de países ibero-americanos, a Igreja católica conseguiu que a “pílula” e a “pílula do dia seguinte” continuem sendo ilegais, assim como toda e qualquer forma de prática anticonceptiva. A proibição, claro, só é efetiva para as mulheres pobres, pois da classe média para cima os anticoncepcionais, assim como o aborto, são amplamente utilizados, apesar da proibição legal.
Coisa parecida pode ser dita das igrejas protestantes. Muitas vezes com o apoio dos católicos, nos Estados Unidos elas tomaram a iniciativa de mobilizar-se para que o ensino escolar se ajustasse aos postulados da Bíblia, e seja abolida dos currículos a teoria de Darwin sobre a seleção das espécies e a evolução, sendo esta substituída pelo “criacionismo”, ou “projeto inteligente”, postura anticientífica que, por mais anacrônica e obscurantista que pareça, não é impossível que chegue a prevalecer em certos estados norte-americanos onde a influência religiosa é muito grande no campo político. […]

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