Uma conceito negativo de felicidade

SCHOPENHAUER, Ou le désir malheureux du bonheur. In: DANINO, P.; OUDIN, É. Paris: Eyrolles, 2010. 198p.

A existência, entre o sofrimento e o tédio. A gravidade é um esforço interminável e incessante, nunca satisfeito, que acompanha toda a existência da planta. Quando a vontade – outro nome para esse esforço e também o desejo – é interrompida por algum obstáculo que surge entre ela e seu objetivo do momento, há sofrimento¹. O desejo é sofrimento porque é o resultado de um estado que não nos satisfaz e porque nenhuma satisfação duradoura é capaz de pôr um fim a esse sofrimento. Vemos o desejo em todo lugar parado, em todo lugar em luta, portanto sempre em estado de sofrimento; até o último momento para acontecer, sem fim o sofrimento².

A infelicidade é, portanto, o direito comum de uma existência que nunca deixa de oscilarsofrimentoetédio. Pois quando não há sofrimento, isto é, quando está-se satisfeito por um momento após o desejo, então em seguida vem o tédio. E fazemos de tudo para fugir:

Necessidade e sofrimento não nos dão trégua antes do que o tédio chegue; alguma distração é necessária a todo custo. O que mantém todos os seres vivos ocupados, o que os mantém em movimento é o desejo de viver. Bem, essa existência, uma vez garantida, não sabemos o que fazer com ela ou para que usá-la. Então chega a segunda primavera que nos coloca em movimento, o desejo de libertarmos do fardo da existência, de torná-la insensível, de matar o tempo, o que significa fugir do tédio. Então, vemos a maioria das pessoas livres de necessidade e preocupação e dependem de si mesmas, dizendo para si mesmas, a cada hora que passa: o máximo de tempo ganho!

Quando sofremos, sentimos falta da felicidade e, quando não sofremos mais, estamos entediados. O tédio não é, portanto, o oposto do sofrimento, mas sempre no contexto de querer viver como um desejo ilimitado, e que é outro aspecto de nossa condição miserável, de maneira que, a vida oscila como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o tédio². O desemprego é um infortúnio, mas todos sabem que o trabalho, na realidade, como tal, não é necessariamente uma felicidade.

O tédio faz com que, a maioria que não está bem, buscar uma saída para os seus males: passeios, fofocas, jogos e outras, segundo Schopenhauer.

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¹ Ibid. Livro IV, § 56.

² Ibid.

¹ Ibid.

² Ibid.

Uma conceito negativo de felicidade

O sofrimento inútil

LÉVINAS, E., 1906-1995. Entre nós: ensaios sobre a alteridade.  Tradução de Pergentino Pivatto.  5. ed.  Petropolis, RJ: Vozes, 2010. 271p.

  1. Fenomenologia

O sofrimento é, certamente, na consciência, um dado, um certo conteúdo psicológico, como o vivido da cor, do som, do contato, como qualquer outra sensação. Mas, neste próprio conteúdo, ele é um apesar-da-consciência, o inassumível. O inassumível é a inassumibilidade. Inassumibilidade que não é devida à intensidade excessiva de uma sensação, a qualquer excesso quantitativo, superando a medida de nossa sensibilidade e de nossos meios de apreender e manter; mas um excesso, um demais que se  inscreve num conteúdo sensorial, penetra como sofrimento nas dimensões do sentido que aí parecem abrir-se ou enxertar-se. Como se ao eu penso kantiano,  capaz de reunir em ordem e convergir em sentido, sob suas formas a priori, os dados mais heterogêneos e mais disparatados, o sofrimento não fosse somente um dado refratário à síntese, mas a maneira pela qual a recusa, oposta à reunião de dados em conjunto significativo (sensé), se lhe opõe; a dor é, ao mesmo tempo, o que desordena a ordem e o próprio desordenamento. Não somente consciência de uma rejeição, ou sintoma de rejeição, mas a própria rejeição: consciência ao avesso, operando não como apreensão, mas como revulsão. Uma modalidade. Ambiguidade categorial de qualidade e de modalidade. Negação e recusa de sentido, impondo-se como qualidade sensível; eis à guisa de conteúdo experimentado a maneira pela qual numa consciência, o insuportável precisamente não se suporta, a maneira de não-se-suportar, a qual, paradoxalmente, é ela própria uma sensação ou um dado. Estrutura quase contraditória, mas contradição que não é formal como a da tensão dialética entre o afirmativo e o negativo, se produzindo para o intelecto; contradição à guisa de sensação: dolência da dor, mal.

Em seu apesar-de-consciência, no seu mal, o sofrimento é passividade. Aqui, tomar consciência não é mais, a falar como propriedade, tomar; não é mais,  fazer e falar com propriedade, tomar; não é mais fazer ato de consciência, mas, na adversidade, sofrer; e até sofrer o sofrer, pois o conteúdo, do qual a consciência dolorida é consciente, é precisamente esta adversidade mesma do sofrimento, seu mal. Mas, aí, ainda, passividade – isto é, uma modalidade – significando como quilidade e, talvez, como o lugar em que a passividade significa originalmente, independentemente de sua oposição conceitual à atividade. Abstraindo-se de suas condições psico-físicas e psico-fisiológicas, na sua pura fenomenologia, a passividade do padecer não é o reverso de nenhuma  atividade, como o seria a receptividade sensorial correlativa da ob-stância do objeto que o afeta e o impressiona. A passividade do sofrimento é mais profundamente passiva que a receptividade de nossos sentidos que já é atividade de acolhimento, que logo se faz percepção. No sofrimento, a sensibilidade é vulnerabilidade, mais passiva que a receptividade; ela é provação, mais passiva que a experiência. Precisamente um mal. Não é, na verdade, pela passividade que se descreve um mal, mas é pelo mal que se compreende o padecer. O sofrer é um padecer puro. Não se trata de passividade que degradaria o homem, atentando contra sua liberdade, que a dor limitaria ao ponto de comprometer a consciência de si e de não deixar ao homem, a passividade do sofrer, a não ser a identidade de uma coisa. A humanidade do homem que  é esmagada pelo mal que a dilacera de maneira bem outra do que aquela da não liberdade que a esmaga; violenta e cruelmente, mais irremissivelmente que a negação que domina ou paralisa o ato na não liberdade. O que conta na não liberdade ou no padecer do sofrimento é a concretude do não que surge como mal, mais negativo que todo não apofântico. Esta negatividade do mal é provavelmente, fonte ou núcleo de toda negação apofântica. Não do mal, negativo até ao não sentido. Ao sofrimento refere-se todo mal. Ele é o impasse da vida e do ser, seu absurdo em que a dor não vem colorir de afetividade, e de certa maneira inocente , a consciência, o mal da dor, o próprio dano, é o esfacelamento e como que a articulação mais profunda do absurdo. […]

Nobre pensamento que é a honra de uma modernidade ainda incerta, titubeante, que se anuncia na saída de um século de sofrimentos sem nome, mas no qual o sofrimento do sofrimento, o sofrimento pelo sofrimento inútil de outro homem, o justo sofrimento em mim pelo sofrimento injustificável de outrem, abre sobre o sofrimento a perspectiva ética do inter-humano. Nesta perspectiva, faz-se uma diferença radical entre o sofrimento em outrem no qual é, para mim, imperdoável e me solicita e me chama, e o sofrimento em mim (4), minha própria aventura do sofrimento,  cuja inutilidade constitucional ou congênita pode tornar um sentido o único de que o sofrimento seja susceptível, tornando-se um sofrimento pelo sofrimento, mesmo inexorável, de alguém. Atenção ao sofrimento de outrem que, através das crueldades de nosso século – apesar das crueldades por causa delas -, pode afirmar-se como o próprio nó da subjetividade humana ao ponto de se ver elevado a um supremo princípio ético – o único que não é possível contestar – e até a comandar as esperanças e a disciplina práticas de vastos agrupamentos humanos. Atenção e ação que incumbem aos homens- a seu eu – tão imperiosa e diretamente que não lhes é possível, sem decair, esperá-los de um Deus todo-poderoso. A consciência desta obrigação sem esquivança possível torna, certamente com maior dificuldade, forem espiritualmente mais próxima de Deus que a confiança numa teodiceia qualquer.

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4. Sofrimento em mim, tão radicalmente meu, que não poderia tornar-se assunto de uma pregação. É como sofrimento em mim, e não como sofrimento em geral, que o sofrimento bem-vindo, atestado na tradição espiritual da humanidade, pode significar uma ideia verdadeira: o sofrimento expiatório do justo sofrendo pelos outros, o sofrimento que ilumina, o sofrimento que é procurado pelos personagens de Dostoiévski. Penso também na tradição religiosa judaica que me é familiar, no estou doente de amor do Cântico dos Cânticos, no sofrimento de que falam certos textos talmúdicos e que eles nomeiam Yessourine chel Ahava, sofrimentos por amor, aos quais se mistura o tema da expiação pelos outros. Sofrimento descrito muitas vezes no limite de sua utilidade. Cf. nota precedente, onde, na provação do justo, o sofrimento é também o que não me convém – nem ele nem a recompensa a ele ligada.

O sofrimento inútil