Juntos e amontoados

BAUMAN, Z.,    – 2017. Estranhos à nossa porta. Tradução C. A. Medeiros.  Rio de Janeiro: Zahar, 2017.  119p.

Os primeiros seres humanos, de modo muito semelhante aos hominídeos dos quais se separaram, eram caçadores e coletores, e por esse motivo devem ter sido nômades; seus descendentes, que constituíram a espécie do Homo sapiens, continuaram nômades durante a maior parte de sua história posterior. O historiador William McNeill avalia que “é seguro presumir que, quando nossos ancestrais se tornaram plenamente humanos, eles já eram migratórios, movimentando-se na caça de grandes animais”.¹  Entre 2 milhões e 1,5 milhão de anos atrás, o gênero chamado Homo separou-se do já bípede Australopithecus, 2 milhões de anos mais velho.

Julga-se que as primeiras migrações de nossos ancestrais estavam confinadas ao continente africano – enquanto se acredita que 100 mil anos atrás seus descendentes, que os paleontologistas consideram já pertencentes à espécie do Homo sapiens, saíram da África para o Oriente Médio e de lá se dispersaram por todos os continentes do planeta. Eles eram fundamentalmente migrantes – a migração, como resume Kevin Kenny, “era parte de seu modo de vida”. A história da espécie humana já conheceu um bom número de mudanças e deslocamentos de grandes partes ou da totalidade das sociedades. E, segundo a compilação feita por Kevin Kenny das mais recentes descobertas acadêmicas, “Recentes estudos genéticos demonstram que as mitocôndrias encontradas nas células humanas descendem de uma única mulher, retrospectivamente batizada de “Eva Africana”, que viveu na África em algum momento, entre 200 mil e 150 mil anos atrás.²  Mesmo que haja – como sugerem reportagens que chegam das linhas de frente do atual processo registrado como a “crise migratória” (um codinome, permitam-me insinuar, tão vago quanto ameaçador e intencionalmente alarmante) – algo muito novo na origem dos atuais deslocamentos em massa de pessoas, pouco há de inédito no padrão de respostas sociais/políticas a eles, como estou tentando mostrar.

Mudanças importantes, seminais, no modo de coexistência humanos, contudo, têm ocorrido – entre muitas, a densidade, que cresce regularmente (embora com muita rapidez), da ocupação humana do planeta: uma densidade ao mesmo tempo física e espiritual.

“Na maior parte de nossa história”, como assinalou Kwame Anthony Appiah, nossos ancestrais “veriam, num dia típico, apenas pessoas [que eles] haviam conhecido” durante a maior parte de suas vidas.³ Todas as suas roupas e ferramentas, na verdade, todos os artefatos que viam e usavam em seu cotidiano, eram feitos por essas pessoas. Esse é o mundo que nos moldou, o mundo em que se formou nossa natureza.” Não foi há tanto tempo atrás – na verdade, um minúsculo recorte da história humana – que conseguimos de algum forma “viver lado a lado em sociedades nas quais a maioria dos que falavam nossa língua, compartilhavam nossas leis e produziam a comida posta sobre nossas mesas eram pessoas que jamais chegaríamos a conhecer”.  “Só nos dois últimos séculos chegamos a um ponto em que cada um de nós pode realisticamente imaginar fazer contato com qualquer outro” dos demais 7 bilhões de seres humanos que habitam o planeta Terra. Podemos compartilhar com eles algumas das coisas que fizemos e valorizamos, mas que eles desejam e ambicionam; e podemos impor-lhes coisas que produzimos, mas que eles detestam ou abominam; e o que se aplica a nós também se aplica a eles.

Appiah conclui: o desafio é “pegar mentes e corações formados durante longos milênios numa vida em hostes locais e equipá-los com ideias e instituições que lhes permitirão conviver como a tribo global em que nos transformamos”. Este é de fato um grande desafio, real e verdadeiramente um desafio do tipo vida e morte (vida conjunta, morte conjunta). Aproximando-se (ou talvez) já tendo atingido) uma bifurcação no caminho de nossos possíveis futuros, um deles levando ao bem-estar cooperativo, o outro à extinção coletiva, somos ainda capazes de elevar nossas consciências, intenções e ações à globalidade já existente – e cuja reversão é altamente improvável – de nossa independência em termos de espécie, uma condição que torna a escolha entre sobrevivência e extinção dependente de nossa capacidade de “viver lado a lado”, mutuamente a paz, em solidariedade e cooperação, entre estranhos que podem ou não sustentar opiniões e preferências semelhantes às nossas.

Não existem no planeta terras desocupadas, livres para a colonização. além disso, não há terras que possam ser imaginadas e tratadas como tal por aspirantes a colonizadores ostentando um poder grande o suficiente para forçá-las a se abrir aos recém-chegados que expurgam sua população nativa. Kant previu o advento de tal situação muito antes de isso acontecer. E meditou sobre os “imperativos” que precisariam ser observados quando isso ocorresse – como deve ocorrer. Como conviver – viver em paz – num planeta congestionado, que está atingindo o limite de sua capacidade de ocupação?

Em Terceiro artigo definitivo para a paz perpétua (explicitado como “O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”), Kant insiste em afirmar que o assunto sobre o qual está escrevendo, e aquilo que escreve a esse respeito,

não é uma questão de filantropia, mas de direito. Hospitalidade significa o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado de forma hostil pelo fato de estar em território alheio. O outro pode desprezar o estrangeiro, se isso pode realizar-se sem a ruína deste, mas, enquanto o estrangeiro se comportar amistosamente em seu posto, o outro não pode combatê-lo com hostilidade. Não há nenhum direito de hóspede em que se possa basear essa exigência (para isso seria necessário um contrato especialmente generoso, pelo qual se limitasse o tempo de “hospedagem”), mas um direito de visita, direito a apresentar-se à sociedade, que têm todos os homens em virtude do direito da propriedade em comum da superfície da Terra, sobre a qual o ser humano não pode se estender até o infinito, por ser uma superfície esférica, tendo que se tolerar uns juntos aos outros, e não tendo ninguém originariamente mais direito que o outro de estar em um determinado lugar da Terra. (40).

 

Observe-se a cautela de Kant – e a circunspecção com que articula as condições da “paz perpétua”, em âmbito mundial, num planeta sobre o qual seus habitantes “não podem se estender até o infinito” e, portanto, tendo “de se tolerar uns juntos aos outros”. O que Kant reivindica não é o cancelamento da distinção entre terras (países, Estados soberanos e autônomos, vistos e tratados por suas respectivas populações como suas pátrias de direito), mas “um direito de se associar” (comunicar, entrar numa interação amigável e por fim tentar estabelecer laços de amizade mutuamente benéficos, que se presuma serem enriquecedores do ponto de vista espiritual). O que Kant reivindica é a substituição da hostilidade pela hospitalidade.  No princípio da hospitalidade mútua Kant divisou a possibilidade e a perspectiva da paz universal, pondo fim à longa história de guerras fratricidas que castigaram o continente europeu.

Mais de duzentos anos e diversas guerras sangrentas depois, ainda estamos procrastinando a concretização do apelo de Kant à hospitalidade. […]

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¹ Apud Stéphane Dufoix, Diasporas, University of California Press, 2015, p. 35. “Ser sedentário”, conclui Dufoix, “é um desenvolvimento recente na história humana” (p. 36).

² Kevin Kenny, Diaspora, Oxford University Press, 2013, p. 17.

3 Ver Kwame Anthony Appiah, Cosmopolitanism: Ethics in a World of Strangers, Penguin, 2007.

4. Disponível em: http://www.mtholyoke.edu/acad/intrel/kant/kantl.htm.

 

Juntos e amontoados