“O que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”

NIETZSCHE, F. W.,1844-1900. O caso Wagner: um problema para os músicos; Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução P. C. de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016. 115p.

O caso Wagner

Carta de Turim, maio de 1888

ridendo dicere severum…¹

Ontem – vocês acreditarão? – ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet². Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir. Este triunfo sobre a minha impaciência me espanta. Como uma obra assim aperfeiçoa! Tornamo-nos nós mesmos “obra-prima”. – Realmente, a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio; tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário … Cinco horas sentado: primeira etapa da santidade!- Posso acrescentar que a orquestração de Bizet é quase a única que ainda suporto? Essa outra orquestração atualmente em voga, a wagneriana, brutal artificial e “inocente” ao mesmo tempo, e que assim fala simultaneamente aos três sentidos da alma moderna – como me é prejudicial essa orquestração wagneriana! Eu a denomino “siroco”. Um suor desagradável me cobre de repente. O meu tempo bom vai embora.

Esta música me parece perfeita. Aproxima-se leve, sutil, com polidez. É amável, não transpira. “O que é bom é leve, tudo divino se move com pés delicados”: primeira sentença da minha estética. Esta música é maliciosa, refinada, fatalista: no entanto, permanece popular – ela tem o refinamento de uma raça, não de um indivíduo. É rica. É precisa. Constrói, organiza, conclui: assim, é o contrário do pólipo na música, a “melodia infinita”.³ Alguém já viu num palco entonações mais dolorosamente trágicas? E a maneira como são obtidas! Sem caretas! Sem falsificação! Sem a mentira do grande estilo! – Por fim: esta música trata o ouvinte como pessoa inteligente e até como músico – e também nisso é o oposto de Wagner, que, seja o que mais for era o gênio mais descortês do mundo (Wagner nos trata como se – -, ele repete uma coisa com tal frequência que esperamos – que acreditamos nela).

Mais ainda: eu me torno um homem melhor, quando esse Bizet me persuade. E também um músico melhor, um ouvinte melhor. É possível se escutar ainda melhor? Eu enterro os meus ouvidos sob essa música, eu ouço a sua causa. Parece-me presenciar a sua gênese – estremeço ante os perigos que acompanham alguma audácia, arrebatam-me os acasos felizes de que Bizet é inocente. – E, coisa estranha, no fundo não penso nisso, ou não sei o quanto penso nisso. Pois nesse ínterim me passam bem outros pensamentos pela cabeça. Já se percebeu que a música faz livre o espírito? que dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico? O céu cinzento da abstração atravessado por coriscos; a luz, forte o bastante para se verem as filigranas; os grandes problemas se dispondo à apreensão; o mundo abarcado com a vista, como de um monte, – Acabo de definir o pathos filosófico. – E de súbito caem-me respostas no colo, una pequena chuva de gelo e sapiência, de problemas resolvidos... Onde estou? – Bizet me faz fecundo. Tudo o que é bom me faz fecundo. Não tenho outra gratidão, nem tenho outra prova para aquilo que é bom. […]

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¹ “Rindo, dizer coisas graves”: citação e paródia de Horácio, Sátiras I. 1, 24: […] ridentem dicere verum quid vetat (” o que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”).

² Nietzsche ouviu Carmen pela primeira vez em 27 de novembro de 1881, em Gênova. Depois assistiu a várias apresentações dessa ópera (não sabemos quantas exatamente: “vigésima” é provavelmente força de expressão), inclusive na primavera de 1888, em Turim, quando escrevia O caso Wagner – como atesta uma carta endereçada a Peter Gast em 20 de abril de 1888, na qual diz, em italiano e bem-humoradamente : successo piramidale, tutto Torino carmenizzato! (em Sämtliche Briefe, ed. G. Colli e M. Montinari, DTV/de Gruyter, vol. 8, p. 299; esta carta, juntamente com outras relativas ao O caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, acha-se no final do presente volume.

“O que nos proíbe de, rindo, dizer coisas verdadeiras?”