Para aumentar o seu próprio bem-estar, nunca inflija sofrimentos ao outro

SCHOPENHAUER, A., 1788-1860.  O mundo como vontade e representação. Tradução M. F. Correia.  Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.  431p.

[…] a bondade sincera, a virtude desinteressada, a verdadeira nobreza não têm a sua origem no conhecimento abstrato; têm-na, contudo, no conhecimento, mas este é imediato, intuitivo, o raciocínio não tem nada a ver com ele, nem a favor nem contra;  como não é abstrato, não se transmite, é preciso que cada um o encontre por si mesmo. Por conseguinte, não é nas palavras que obtém a expressão adequada, mas apenas nos fatos, nos atos, na conduta de uma vida de homem. Portanto, nós que temos que estabelecer aqui uma teoria da virtude, e por conseguinte, exprimir de um modo abstrato e na sua essência o conhecimento que lhe serve de fundamento,  não poderíamos envolver nesta expressão esse mesmo conhecimento, mas apenas o conceito desse conhecimento, e para isso, partimos constantemente dos atos, nos quais apenas ele se deixa ver; é para eles que remetemos como para a sua tradução adequada; enfim, limitamo-nos a esclarecer, a interpretar esta tradução, isto é, exprimimos em termos abstratos o fundo real das coisas.

Agora, antes de falar da bondade propriamente dita para a opor à malvadez, que já analisamos, é útil considerar um grau intermediário, que é a negação da malvadez, isto é, a justiça. Já expusemos pormenorizadamente o que é o certo e o injusto. Digamos, portanto, em poucas palavras que se denomina justo quem quer que reconheça espontaneamente os limites traçados só pela moral entre o certo e o injusto e que os respeita, mesmo na ausência do Estado, ou de qualquer outro poder capaz de os manter;  quem, por conseguinte, para voltar à nossa doutrina, nunca vá, na afirmação da sua própria Vontade, até a negação da mesma Vontade em um outro indivíduo. Portanto, para aumentar o seu próprio bem-estar, nunca irá infligir sofrimento ao outro; em outras palavras, não cometerá nenhuma transgressão, respeitará os direitos e os bens de cada um. Vê-se que aos olhos deste homem justo o princípio  de individuação já não é o que era  para o malvado um véu impenetrável;  ele já não se limita, como este último, a afirmar o fenômeno da vontade em si, negando-o no outro; os outros homens já não são para ele fantasmas vãos, e aliás absolutamente distintos dele pela sua essência. Não, ele declara-o pela sua própria conduta: ele reconhece aquilo que constitui o seu próprio ser, a coisa em si que é a Vontade de viver, reconhece-a no fenômeno do outro, que lhe é dado como simples representação;  portanto, ele reconhece-se no outro, até certo ponto, o suficiente, em suma, para não ser injusto, para não lhe trazer mal. Na mesma medida o seu olhar fura o princípio de individuação, o véu de Maya: ele coloca o seu semelhante em pé de igualdade consigo; não lhe faz mal.

Para aumentar o seu próprio bem-estar, nunca inflija sofrimentos ao outro

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