Do novo ídolo: Eu, o Estado, sou o povo!

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução M. da Silva.  14.ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.  381p.

Ainda há povos e rebanhos, em algum sítio, mas não entre nós, meus irmãos: aqui, há Estados.

Estado? Que é isto? Pois seja! Abri bem os ouvidos, porque, agora, vou dizer-vos a minha palavra sobre a morte dos povos.

Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios. E, com toda a frieza, também mente; e esta mentira sai rastejando da sua boca: “Eu, o Estado, sou o povo!”

É mentira! Criadores, foram os que formaram os povos e suspenderam por cima deles uma fé e um amor; assim serviram a vida.

Destruidores, são os que preparam armadilhas para muitos e as chamam Estado; e suspendem por cima deles uma espada e cem cobiças.

Onde ainda existe povo, este não compreende o Estado e o odeia como má sorte e uma ofensa aos costumes e à justiça.

Esta indicação eu vos dou: cada povo fala a sua língua do bem e do mal e não entende o vizinho. Cada povo inventou a sua própria língua, segundo os costumes e a justiça.

Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e, qualquer coisa que diga, mente – e, qualquer coisa que possua, roubou-a.

Nele, tudo é falso. Morde com os dentes roubados, esse mordedor; falsas são, até, suas entranhas.

Confusão de línguas do bem e do mal: esta indicação eu vos dou como marca do Estado. Essa marca, na verdade, significa vontade de morte! Na verdade, ela chama os pregadores da morte!

Nasce gente demais; para os supérfluos, inventou-se o Estado!

Vede como ele os atrai a si, aos muitos-demais! Como os devora e mastiga e rumina!

“Nada há na terra maior do que eu;  eu sou o dedo ordenador de Deus” – assim urra o monstro. E não somente aqueles de orelhas compridas e vista curta se põem de joelhos!

Ah, também a vós, ó grandes almas, ele cochicha suas torvas mentiras! ah, como adivinha os corações ricos, que gostam de prodigalizar seus tesouros!

Sim, também a vós ele adivinha, ó vencedores do velho Deus! Ficastes cansados na luta e, agora, o vosso cansaço ainda serve o novo ídolo!

De heróis e homens honrados, desejaria rodear-se o novo ídolo! Como gosta de aquecer-se – o frio monstro, ao sol das consciências tranqüilas!

Tudo quer dar-vos, o novo ídolo, se vós o adorais:  assim compra para si o brilho da vossa virtude e o olhar dos vossos olhos altaneiros.

Qual isca, ele vos quer, para apanhar os muitos-demais! Sim, um ardil infernal foi, destarte, inventado, um cavalo de morte, retinindo no jaez de divinas honrarias!

Sim, uma morte para muitos foi, destarte, inventada, que se apregoa por vida: na verdade, um serviço de amigo para todos os pregadores da morte.

Estado, chamo eu, o lugar onde todos, bons ou malvados, são bebedores de veneno; Estado, o lugar onde todos, bons ou malvados, se perdem a si mesmos; Estado, o lugar onde o lento suicídio de todos chama-se – “vida”!

Olhai esses supérfluos! Roubam para si as obras dos inventores e os tesouros dos sábios; “cultura” chamam a seus furtos – e tudo se torna, neles, em doença e adversidade!

Olhai esses supérfluos! Estão sempre enfermos, vomitam fel e lhe chamam “jornal”. Devoram-se uns aos outros e não podem, sequer, digerir-se.

Olhai esses supérfluos! Adquirem riquezas e, com elas, tornam-se mais pobres. Querem o poder e, para começar, a alavanca do poder, muito dinheiro – esses inteligentes!

Olhai como sobem trepando, esses ágeis macacos! Sobem trepando uns por cima dos outros e atirando-se mutuamente, assim, no lodo e no abismo.

Ao trono, querem, todos, subir: é essa a sua loucura – como se no trono estivesse sentada a felicidade! Muitas vezes, é o lodo que está no trono – e, muitas vezes, também o trono no lodo.

Dementes, são todos eles, para mim, e macacos sobreexcitados. Mau cheiro exala o seu ídolo, o monstro frio; mau cheiro exalam todos eles, esses servidores de ídolos!

Porventura, meus irmãos, quereis sufocar nas exalações de seus focinhos e de suas cobiças? Quebrai, de preferência, os vidros das janelas e pulai para o ar livre!

Fugi do mau cheiro! Fugi da idolatria dos supérfluos!

Fugi do mau cheiro!  fugi da fumaça desses sacrifícios humanos!

Também agora, ainda a terra está livre para as grandes almas. Vazios estão ainda, para a solidão a um ou a dois, muitos sítios, em torno dos quais bafeja o cheiro de mares calmos.

Ainda está livre, para as grandes almas, uma vida livre.  Na verdade, quem pouco possui, tanto menos pode tornar-se possuído: louvada seja a pequena pobreza!

Onde cessa o Estado, somente ali começa o homem que não é supérfluo, ali começa o canto do necessário, essa melodia única e insubstituível.

Onde o Estado cessa –  olhai para ali, meus irmãos! Não vedes o arco-íris e as pontes do super-homem? –

        Assim falou Zaratustra.

Do novo ídolo: Eu, o Estado, sou o povo!

Deixe um comentário