Quem me aquece, quem ainda me ama?

NIETZSCHE, F. W., 1844-1900. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução M. da Silva.  14.ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.  381p.

Contudo, ao contornar um penhasco, viu Zaratustra, no mesmo caminho e não muito abaixo de onde se achava, um homem que agitava os braços como um louco furioso e que, no fim caiu de bruços ao solo. “Alto!”, falou Zaratustra ao seu coração. “Deve ser esse, decerto, o homem superior, partiu dele aquele terrível grito de socorro;  – quero ver se posso ser-lhe de auxílio.” Mas, quando correu para o lugar onde o homem jazia, encontrou um trêmulo velhinho de olhos esgazeados; e, por mais que se esforçasse Zaratustra para levantá-lo e fazê-lo ficar em pé, foi tudo em vão. Também pareci que o infeliz não visse, sequer, que alguém se ocupava dele; ao contrário, continuava olhando ao seu redor, com gestos de causar dó, como alguém abandonado pelo mundo inteiro e forçado à solidão. Por fim, após muito tremer, estremecer, contorcer-se e encolher-se, assim começou a lamuriar:

 

“Quem me aquece, quem ainda me ama?

Dai-me mãos quentes!

Dai-me braseiros do coração!

Estendido no solo e em calafrios,

Qual moribundo cujos pés se aquecem, –

Por obscura sezão sacudido,

Tremendo de álgidas setas de gelo,

Por ti enxotado, ó pensamento!

Terrível! Encoberto! Inominável!

Caçador atrás das nuvens!

Derribado pelo teu raio,

Olho escarninho a mirar-me, na treva:

– eis-me jazendo,

A dobrar-me, a enrolar-me, atormentado

Por todo o eterno suplício,

Ferido

Por ti, ó  o mais cruel dos caçadores,

Ó – deus desconhecido!

 

Fere mais fundo!

Fere ainda uma vez!

Trespassa, espedaça este meu coração!

Para quê, este martírio

Com despontadas setas?

Que tornas a olhar,

Jamais cansado da dor humana,

Com satisfeitos, relampejados olhos divinos?

Não matar, queres tu,

Mas tão-só torturar, torturar?

Para quê – torturar-me, 

Ó tu, maligno deus desconhecido? –

 

Ah, a furto te aproximas?

Nesta noite profunda,

Que queres? Fala!

Urges-me, acuas-me –

Ah, já perto demais!

Vai-te! Vai-te!

Ouves o meu respirar,

Escutas o meu coração,

Deus ciumento –

Mais ciumento de quê?

Vai-te! Vai-te! A que serve essa escada?

Queres entrar,

Subir para dentro do meu coração,

Subir para dentro

Dos mais secretos meus pensamentos?

 

Ó impudente – ladrão desconhecido!

Que pretendes roubar?

Que pretende captar teu ouvido?

Que pretendes obter pela tortura,

Ó algoz!

Ó – deus verdugo!

Ou deverei como um cão

Revolver-me aos teus pés?

E submisso, tremendo de alegria,

Dar-te provas de amor – movendo a cauda?

 

Em vão! Fere-me mais,

Ó o mais cruel dos espinhos!

Não o teu cão, eu sou – apenas a tua caça,

Ó o mais cruel dos caçadores!

E o teu prisioneiro mais altivo,

Ó bandido atrás das nuvens!

Fala, por fim!

O que queres de mim, salteador?

Ó tu, desconhecido oculto em raios!

Fala, que queres, deus desconhecido? —

 

Como? Um resgate?

E qual é esse resgate?

Pede muito – sugere o meu orgulho!

E sê breve – sugere meu outro orgulho!

 

Ah! Ah!

É a mim – que tu queres, a mim?

A mim – totalmente?

 

Ah! Ah!

E me torturas, parvo que és,

Martirizas meu orgulho?

 

Dá-me amor – quem ainda me aquece?

Quem inda me ama? – Dá-me mãos quentes,

Dá-me braseiros do coração,

Dá-me, a mim, tão solitário

Que o gelo, o setúplice gelo

Até por inimigos,

Por inimigos me ensina a suspirar,

Dá, entrega,

Ó o mais cruel dos inimigos,

– Entrega-te tu a mim! – –

 

Foi-se embora!

Até ele fugiu,

Só companheiro que me restava,

O meu grande inimigo,

O meu desconhecido

Deus verdugo!

 

– Ah, não! Regressa,

Com todas as tuas torturas!

Oh, regressa

Ao derradeiro solitário!

Já no teu rumo correm

Os regatos do meu pranto!

E a chama derradeira do meu peito –

Arde por ti!

Oh, regressa,

Meu deus desconhecido! Minha dor!

Minha última – ventura!”

 

 

 

 

 

 

Quem me aquece, quem ainda me ama?

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