A moralidade

DURKHEIM, É., 1858-1917. Ética e sociologia da moral. Tradução P. Castanheira. São Paulo: Martin Claret, 2016. 95p.

Do fato de os costumes sociais terem sua origem em práticas religiosas não resulta que, em última análise, os sentimentos morais derivem apenas de sentimentos religiosos. Junto com estes últimos havia, desde o inicio, tendências sociais cujas origens estavam na natureza humana. De fato, todas as pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade. O que os unia não era, como se afirma com frequência, relações de sangue, mas semelhanças de língua, hábitos e costumes. As primeiras sociedades não foram famílias, e sim agregados muito menos determinados, nos quais ainda não havia se formado nenhum laço definido de parentesco. As famílias só passaram a existir mais tarde; foram o resultado de uma diferenciação que acabou por acontecer dentro da tribo.

A afinidade entre iguais (die Neigung zu dem Genossen) é assim a forma mais antiga de inclinação social. Por rudimentar que seja, esse sentimento não é produto do egoísmo. E, em princípio, um fator autônomo de progresso moral. Mas era tão fraco, tão indefinido, que teria sido rapidamente superado pelas tendências ao egoísmo se tivesse que lutar sozinho contra elas. Encontrou, contudo, um aliado poderoso nos sentimentos religiosos. A religião, como já vimos, era uma escola natural de desprendimento e abnegação. O respeito às ordens divinas e a simpatia pelos semelhantes são as duas fontes de onde emergem todo os nossos impulsos altruístas e com eles toda a moral.

Entretanto, o egoísmo teve um papel nessa evolução: percebem-se traços dele em todas as morais primitivas. O altruísmo era tão fraco que dificilmente teria prevalecido mesmo com o auxílio da religião, se o egoísmo não tivesse colaborado. Encontram-se em Homero muitos relatos de atos desprendidos; mas os motivos eram sempre marcados por um egoísmo ingênuo. Se um guerreiro arrisca a vida para salvar um companheiro é porque tal devoção é gloriosa ou geralmente útil, pois significa a obtenção de um apoio que pode vir a ser necessário.

Como, então, estímulos egoístas, tão poderosos no início, desaparecem da conduta moral e dão lugar a motivos verdadeiramente desinteressados? Seria porque se tornam mais esclarecidos? Passaram as pessoas, depois de algum tempo, a perceber o egoísmo como um inimigo? Isso seria atribuir um enorme poder de previsão à inteligência humana em geral, e em especial à inteligência rústica dos povos primitivos. Na realidade, a evolução foi inteiramente mecânica; nem planejamento nem previsão tiveram participação. Os estímulos egoístas foram eliminados porque eram contraditórios. Em outras palavras, a evolução foi o produto de um tipo de estabilização e de regularização espontânea de tendências desse tipo (Compensation und Selbstregulation egoísdscher Triebe). Vamos imaginar que em alguns casos a simples simpatia não tenha a força necessária para superar as inclinações egoístas e só encontre apoio em motivos desinteressados. Quando isso acontece, a satisfação egoísta sentida por se ter triunfado sobre si próprio se transforma num motivo sui generis que reforça a tendência à simpatia e assegura sua vitória sem necessidade de maiores apelos a considerações desinteressadas. Fatores egoístas são dessa forma neutralizados e se cancelam mutuamente, ao passo que a tendência genuinamente altruísta emerge da massa que a confinava. Tal altruísmo, entretanto, não é apenas um egoísmo disfarçado ou transformado; e seria um erro confundir sua origem com a que o utilitarismo lhe atribuiu. O altruísmo não vem do egoísmo, pois nada deriva do seu oposto. Desde o início ele existe na obscuridade e geralmente neutralizado por interesses pessoais. Tais interesses não geram os seus contrários quando desaparecem cessam apenas de obstruir sua manifestação. Ademais, interesses pessoais certamente não se extinguem, nem hão de desaparecer completamente. Há espaço no coração humano para mais de um sentimento.

Como a simpatia original se prende unicamente a indivíduos, é natural que ela varie com eles. E a história demonstra que essa tendência primitiva se torna cada vez mais diferenciada à medida que se diferenciam os contextos onde ela aparece. De início, um mesmo sentimento une todos os membros de uma tribo (Stammgefühl) , e há consequentemente uma moral comum a todos – uma moral tão simples e inconsistente quanto a sociedade que representa. Mas quando a família começa a emergir do corpo dessa massa homogênea, sentimentos e uma moral domésticos se desenvolvem simultaneamente. Nascem depois os Estados, classes e castas se organizam, multiplicam-se as desigualdades, e se diversificam os sentimentos e moral coletivos conforme as condições sociais. Existe uma moral para cada classe social – escravos, homens livres, sacerdotes, guerreiros, etc. De outro lado, como a moral tem origens religiosas, ela passa a ser nacional, tal como a religião. Cada nação tem a sua própria moral, que se relaciona apenas consigo mesma: as pessoas têm deveres e obrigações apenas com seus concidadãos.

Mas essa dispersão das ideias morais não é a última palavra do progresso. Já há muito tempo um movimento de concentração vem se desenvolvendo, que ainda hoje se desenrola diante de nossos olhos. A medida que as sociedades se tornam maiores, os laços que prendem as pessoas entre si deixam de ser pessoais. A verdadeira simpatia é substituída por outra mais abstrata, mas não menos poderosa, uma ligação com a comunidade de que se participa, ou seja, com os bens materiais e ideias que as pessoas têm em comum – arte, literatura, ciências, costumes, etc. A partir desse ponto, membros da mesma sociedade são amigos e se ajudam mutuamente, não apenas por se conhecerem, ou conforme o grau de conhecimento que tenham entre si, mas porque participam todos da consciência coletiva. Esse sentimento é muito impessoal para permitir que a moral tenha a variedade que tinha antes; é muito geral para que a moral continue sendo particular. Na medida em que as ideias e sentimentos comuns surgem do âmago da sociedade, desaparecem as diferenças. Mesclados no corpo da consciência social que os envolve, indivíduos e classes, em virtude de suas próprias relações, veem diminuir gradualmente os abismos que antes os separavam. Essa fusão de indivíduos e classes não faz desaparecer as desigualdades externas, o que não é possível nem desejável, pois as desigualdades é um estimulante que, se não é moral em si, é necessário para a moral. Não é menos verdade, contudo, que todos os cidadãos da mesma nação tendem cada vez mais a se verem como iguais por se verem como servidores do mesmo ideal – do que resulta a crescente uniformidade de vestimenta, estilo, maneiras, etc., e a tendência cada vez mais pronunciada ao nivelamento das desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, esse ideal comunitário, por ser impessoal, independe cada vez mais de tempo e espaço. Eleva-se assim gradualmente acima de sociedade particulares e se torna o ideal único da humanidade. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a moral de classe e casta desaparece, também desaparece finalmente a moral nacional para que surja a moral da humanidade.

Quanto à civilização, ela tem uma influência complexa sobre essa tendência. Aprimoramento dos meios de transporte e de comunicação certamente contribuíram para a aceleração desse movimento de concentração; avanços tecnológicos aliviaram o peso esmagador do trabalho mecânico sobre o desenvolvimento da mente; a educação se distribuiu entre classes que a ela não tinham acesso, e o Estado passou a exigi-la de seus cidadãos. Mas ainda há bens mal distribuídos. A velocidade da comunicação, ao estender infinitamente os mercados e fazer a prosperidade individual depender de um número infinito de causas muito complexas, exige de cada um de nós esforços de planejamento e um gasto de energia que antes não era necessário à vida. Finalmente, a atual organização da indústria tem o efeito de separar os empresários mais e mais dos trabalhadores, revivendo a escravidão, que assume uma nova forma. Assim, a civilização não é em si um fator moral; ela contém elementos de todos os tipos e para a moral tem tanto desvantagens quanto vantagens. Isto não é razão para fazer retroceder a humanidade – proposta tão ridícula quanto absurda -, pois o mundo avança inexoravelmente e é impossível evitar a mudança. Se a civilização tem suas imperfeições e perigos, é preciso apenas reconhecê-los e livrar-se deles.

Essa análise histórica das ideias morais ocupa quase a metade da obra de Wundt e pode ser resumida nos seguintes tópicos: (Continua)

A moralidade