Elementos da moralidade

DURKHEIM, É., 1858-1917. Ética e sociologia da moral. Tradução P. Castanheira. São Paulo; Martin Claret, 2016. 95p.

(Continuação)

Os elementos comuns a todas as concepções morais são:

Elementos formais

A ideia de moral se expressa universalmente na forma de conceitos antitéticos aos quais se ligam julgamentos de aprovação ou desaprovação. As coisas a que as pessoas atribuem valor moral positivo são as que oferecem satisfação duradoura. Essa ideia de duração se expressa na forma de crenças religiosas referentes à imortalidade.

Elementos materiais

Como as ideias morais incluem elementos que reaparecem em todos os períodos da história, tais elementos devem consistir em certos fatos psicológicos que derivam da natureza humana em geral, pois somente a natureza humana, em todos os lugares, permanece sempre a mesma ao longo da extrema instabilidade da mudança histórica. De fato, já vimos que o conjunto da vida moral foi transformado por duas grandes tendências: a inclinação para a simpatia e o sentimento de rspeito (die Ehrfurchts-und die Neigungsgefúhlé).

O segundo destes sentimentos vem das crenças religiosas; o primeiro da vida social. Mas pouco a pouco eles se combinaram de milhares de formas e dessas combinações vem toda a complexidade das ideias morais.

LEIS GERAIS DA EVOLUÇÃO MORAL

Existem duas:

A lei dos três estágios

As primeiras manifestações da vida moral mostram uma grande homogeneidade; as tendências sociais são simples e muito fracas. No segundo período, os sentimentos sociais se diferenciam e produzem uma diferenciação espontânea das ideias morais (die Trennung der sittlichen Begriffe). Finalmente, o terceiro estágio é a era da síntese e da concentração.

A lei dos fins heterogêneos (Das Gesetz der Heterogenie der Zwecke)

Esse é o princípio mais geral da evolução moral e aquele a que o autor parece atribuir a maior importância. Ações voluntárias produzem consequências que ultrapassam os motivos que as causaram. Quando tomamos consciência das consequências que não havíamos previsto, elas passam a ser objeto de novas ações e geram novos motivos. Estes, por seu turno, produzem efeitos que, mais uma vez, estendem-se além deles, e assim por diante, indefinidamente. Pode-se então estabelecer o princípio de que os resultados de nossas ações nunca são os motivos reais; e pela mesma razão pode-se assegurar que os motivos que inspiram nossa ação de hoje não são os mesmos que a produziram originalmente. Quando um corpo cai numa lagoa, vê-se uma onda circular se formar na superfície, que então faz surgir outra maior que a circunda. Ao mesmo tempo, a primeira avança e parece tentar alcançar a segunda; mas antes que a alcance, a segunda também avança, e então se forma uma terceira onda que também se afasta quando a segunda tenta alcançá-la As ideias morais se desenvolvem da mesma forma. Os resultados de nossas ações sempre avançam além dos motivos, e à medida que os motivos se aproximam dos resultados, estes se afastam. […]

Resumindo, as ideias morais se formam sob a influência de causas inconscientes dos efeitos que elas continham. O pensamento deliberado tem um papel pequeno nesse processo; só intervém para estabelecer e consagrar os resultados que surgiram sem ele. A religião gera espontaneamente os costumes, e os costumes, por sua vez, a moral. Essa teoria é análoga à forma como Darwin explicou a formação dos instintos, morais ou não. Com efeito, para esse teórico inglês, os instintos resultam de variações acidentais que se descobrem ser úteis para os animais, mas que se originaram sem qualquer objetivo.

Elementos da moralidade

A moralidade

DURKHEIM, É., 1858-1917. Ética e sociologia da moral. Tradução P. Castanheira. São Paulo: Martin Claret, 2016. 95p.

Do fato de os costumes sociais terem sua origem em práticas religiosas não resulta que, em última análise, os sentimentos morais derivem apenas de sentimentos religiosos. Junto com estes últimos havia, desde o inicio, tendências sociais cujas origens estavam na natureza humana. De fato, todas as pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade. O que os unia não era, como se afirma com frequência, relações de sangue, mas semelhanças de língua, hábitos e costumes. As primeiras sociedades não foram famílias, e sim agregados muito menos determinados, nos quais ainda não havia se formado nenhum laço definido de parentesco. As famílias só passaram a existir mais tarde; foram o resultado de uma diferenciação que acabou por acontecer dentro da tribo.

A afinidade entre iguais (die Neigung zu dem Genossen) é assim a forma mais antiga de inclinação social. Por rudimentar que seja, esse sentimento não é produto do egoísmo. E, em princípio, um fator autônomo de progresso moral. Mas era tão fraco, tão indefinido, que teria sido rapidamente superado pelas tendências ao egoísmo se tivesse que lutar sozinho contra elas. Encontrou, contudo, um aliado poderoso nos sentimentos religiosos. A religião, como já vimos, era uma escola natural de desprendimento e abnegação. O respeito às ordens divinas e a simpatia pelos semelhantes são as duas fontes de onde emergem todo os nossos impulsos altruístas e com eles toda a moral.

Entretanto, o egoísmo teve um papel nessa evolução: percebem-se traços dele em todas as morais primitivas. O altruísmo era tão fraco que dificilmente teria prevalecido mesmo com o auxílio da religião, se o egoísmo não tivesse colaborado. Encontram-se em Homero muitos relatos de atos desprendidos; mas os motivos eram sempre marcados por um egoísmo ingênuo. Se um guerreiro arrisca a vida para salvar um companheiro é porque tal devoção é gloriosa ou geralmente útil, pois significa a obtenção de um apoio que pode vir a ser necessário.

Como, então, estímulos egoístas, tão poderosos no início, desaparecem da conduta moral e dão lugar a motivos verdadeiramente desinteressados? Seria porque se tornam mais esclarecidos? Passaram as pessoas, depois de algum tempo, a perceber o egoísmo como um inimigo? Isso seria atribuir um enorme poder de previsão à inteligência humana em geral, e em especial à inteligência rústica dos povos primitivos. Na realidade, a evolução foi inteiramente mecânica; nem planejamento nem previsão tiveram participação. Os estímulos egoístas foram eliminados porque eram contraditórios. Em outras palavras, a evolução foi o produto de um tipo de estabilização e de regularização espontânea de tendências desse tipo (Compensation und Selbstregulation egoísdscher Triebe). Vamos imaginar que em alguns casos a simples simpatia não tenha a força necessária para superar as inclinações egoístas e só encontre apoio em motivos desinteressados. Quando isso acontece, a satisfação egoísta sentida por se ter triunfado sobre si próprio se transforma num motivo sui generis que reforça a tendência à simpatia e assegura sua vitória sem necessidade de maiores apelos a considerações desinteressadas. Fatores egoístas são dessa forma neutralizados e se cancelam mutuamente, ao passo que a tendência genuinamente altruísta emerge da massa que a confinava. Tal altruísmo, entretanto, não é apenas um egoísmo disfarçado ou transformado; e seria um erro confundir sua origem com a que o utilitarismo lhe atribuiu. O altruísmo não vem do egoísmo, pois nada deriva do seu oposto. Desde o início ele existe na obscuridade e geralmente neutralizado por interesses pessoais. Tais interesses não geram os seus contrários quando desaparecem cessam apenas de obstruir sua manifestação. Ademais, interesses pessoais certamente não se extinguem, nem hão de desaparecer completamente. Há espaço no coração humano para mais de um sentimento.

Como a simpatia original se prende unicamente a indivíduos, é natural que ela varie com eles. E a história demonstra que essa tendência primitiva se torna cada vez mais diferenciada à medida que se diferenciam os contextos onde ela aparece. De início, um mesmo sentimento une todos os membros de uma tribo (Stammgefühl) , e há consequentemente uma moral comum a todos – uma moral tão simples e inconsistente quanto a sociedade que representa. Mas quando a família começa a emergir do corpo dessa massa homogênea, sentimentos e uma moral domésticos se desenvolvem simultaneamente. Nascem depois os Estados, classes e castas se organizam, multiplicam-se as desigualdades, e se diversificam os sentimentos e moral coletivos conforme as condições sociais. Existe uma moral para cada classe social – escravos, homens livres, sacerdotes, guerreiros, etc. De outro lado, como a moral tem origens religiosas, ela passa a ser nacional, tal como a religião. Cada nação tem a sua própria moral, que se relaciona apenas consigo mesma: as pessoas têm deveres e obrigações apenas com seus concidadãos.

Mas essa dispersão das ideias morais não é a última palavra do progresso. Já há muito tempo um movimento de concentração vem se desenvolvendo, que ainda hoje se desenrola diante de nossos olhos. A medida que as sociedades se tornam maiores, os laços que prendem as pessoas entre si deixam de ser pessoais. A verdadeira simpatia é substituída por outra mais abstrata, mas não menos poderosa, uma ligação com a comunidade de que se participa, ou seja, com os bens materiais e ideias que as pessoas têm em comum – arte, literatura, ciências, costumes, etc. A partir desse ponto, membros da mesma sociedade são amigos e se ajudam mutuamente, não apenas por se conhecerem, ou conforme o grau de conhecimento que tenham entre si, mas porque participam todos da consciência coletiva. Esse sentimento é muito impessoal para permitir que a moral tenha a variedade que tinha antes; é muito geral para que a moral continue sendo particular. Na medida em que as ideias e sentimentos comuns surgem do âmago da sociedade, desaparecem as diferenças. Mesclados no corpo da consciência social que os envolve, indivíduos e classes, em virtude de suas próprias relações, veem diminuir gradualmente os abismos que antes os separavam. Essa fusão de indivíduos e classes não faz desaparecer as desigualdades externas, o que não é possível nem desejável, pois as desigualdades é um estimulante que, se não é moral em si, é necessário para a moral. Não é menos verdade, contudo, que todos os cidadãos da mesma nação tendem cada vez mais a se verem como iguais por se verem como servidores do mesmo ideal – do que resulta a crescente uniformidade de vestimenta, estilo, maneiras, etc., e a tendência cada vez mais pronunciada ao nivelamento das desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, esse ideal comunitário, por ser impessoal, independe cada vez mais de tempo e espaço. Eleva-se assim gradualmente acima de sociedade particulares e se torna o ideal único da humanidade. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a moral de classe e casta desaparece, também desaparece finalmente a moral nacional para que surja a moral da humanidade.

Quanto à civilização, ela tem uma influência complexa sobre essa tendência. Aprimoramento dos meios de transporte e de comunicação certamente contribuíram para a aceleração desse movimento de concentração; avanços tecnológicos aliviaram o peso esmagador do trabalho mecânico sobre o desenvolvimento da mente; a educação se distribuiu entre classes que a ela não tinham acesso, e o Estado passou a exigi-la de seus cidadãos. Mas ainda há bens mal distribuídos. A velocidade da comunicação, ao estender infinitamente os mercados e fazer a prosperidade individual depender de um número infinito de causas muito complexas, exige de cada um de nós esforços de planejamento e um gasto de energia que antes não era necessário à vida. Finalmente, a atual organização da indústria tem o efeito de separar os empresários mais e mais dos trabalhadores, revivendo a escravidão, que assume uma nova forma. Assim, a civilização não é em si um fator moral; ela contém elementos de todos os tipos e para a moral tem tanto desvantagens quanto vantagens. Isto não é razão para fazer retroceder a humanidade – proposta tão ridícula quanto absurda -, pois o mundo avança inexoravelmente e é impossível evitar a mudança. Se a civilização tem suas imperfeições e perigos, é preciso apenas reconhecê-los e livrar-se deles.

Essa análise histórica das ideias morais ocupa quase a metade da obra de Wundt e pode ser resumida nos seguintes tópicos: (Continua)

A moralidade

A Ética*

DURKHEIM, É., 1858-1917.  Ética e sociologia da moral. Tradução P. Castanheira.  São Paulo: Martin Claret, 2016.  95p.

Na França só se conhecem dois tipos de moral: a dos espiritualistas e kantianos, e a dos utilitaristas. Mas surgiu recentemente na Alemanha uma escola de teóricos morais que se propôs estudar a ética como uma ciência especial, com seu método e seus princípios. As diferentes ciências filosóficas tendem cada vez mais a se afastar umas das outras e a abandonar as grandes hipóteses metafísicas que sempre foram a sua raiz comum. Hoje a psicologia não é materialista nem espiritualista. Por que o mesmo não poderia ser válido para a moral?

Os moralistas: Wilhelm Wundt.  […] A metodologia de Wundt é claramente empírica. Segundo ele, não existe outra ciência filosófica em que a especulação pura seja menos produtiva do que em moral. Nela, a complexidade dos fatos é de tal ordem que todos os sistemas construídos somente pela razão parecem absolutamente inadequados e grosseiros quando comparados à realidade. A própria razão, ademais, erra quando se crê a única criadora dessas brilhantes construções! Longe de ser adequada para a tarefa, a razão não tem capacidade de tratar desse tema sem auxílio e, sem o saber, toma emprestado da experiência tudo o que pensa ter criado sozinha.

Na moral, como nas outras ciências, é necessário portanto partir da observação. Mas como são inúmeros os fatos que chamam a atenção do observador, o método empírico levou a caminhos opostos, conforme se desse  preferência a este ou àquele tipo de fenômeno. Em consequência, existem tantas teorias éticas quantos  são os diferentes aspectos dos fatos morais. Um moralista, por exemplo, faz com que o conjunto da moral consista nos estímulos que governam nossa vontade, na natureza de nossas intenções. Outros, pelo contrário, estudaram mais as consequências objetivas dos atos e preferiram refletir sobre o material originado às vezes do direito positivo, às vezes da economia política, às vezes da história das civilizações. Assim se desenvolveu uma moral jurídica, uma moral econômica, uma moral antropológica, entre outras. Wundt reage contra essa tendência de fragmentar a moral em uma infinidade de ciências distintas que se ignoram mutuamente. Propõe-se mostrar as relações entre esses estudos especiais e restaurar finalmente a unidade da ação prática que essa extrema especialização ignora e ameaça. Não esconde as dificuldades do empreendimento e reconhece de início que este será necessariamente imperfeito: mas considera útil o esforço.

Ele leva o ecletismo ainda mais longe, buscando conciliar não apenas as várias direções do método empírico, mas também o próprio método empírico com o método especulativo. Não há dúvida de que se deve começar pela observação dos fatos que a experiência nos oferece; mas, quando isso é feito, o problema moral ainda não está resolvido. O objeto da ética é acima de tudo estabelecer os princípios gerais dos quais os fatos morais são apenas aplicações particulares. Os empiristas acreditam, é verdade, poder encontrar esses princípios em certos fenômenos psicológicos; mas então são forçados a se limitar a uma moral inteiramente subjetiva. Ora, é muito pouco provável que o mundo tão complexo da moral comporte uma explicação tão simples. E claro que não se tem o direito de decidir a priori que a observação psicológica é insuficiente e, enquanto não chegarmos ao ponto na ciência onde tal insuficiência se torne evidente e tenhamos necessidade de outros procedimentos, teremos de guardar uma prudente reserva e manter uma completa imparcialidade. Entretanto, pode-se supor que tudo o que é válido para as ciências naturais também o seja para a moral. As ciências naturais também produzem axiomas – hipóteses que não são dados imediatos da experiência, mas que, ao contrário, são incorporadas a ela para torná-la inteligível. Apesar de a descoberta de tais princípios se seguir à observação de fatos, eles não são resultado da observação, e sim produtos da especulação. A especulação que Wundt tem em mente, entretanto, não consiste em qualquer espécie de revelação de verdades transcendentes. Ela não se opõe à observação, mas a completa. Enquanto houver nas explicações à nossa disposição conceitos que a abstração e a indução extraíram diretamente da experiência, a observação governa sem contestações. A especulação só começa onde falham conceitos desse  tipo e onde a mente, sob a influência da necessidade de coerência, que é a verdadeira lei do pensamento, cria conceitos hipotéticos para tornar a experiência inteligível. Assim definido, o método especulativo não é uma disciplina exclusivamente filosófica; ao contrário, não existe ciência positiva que possa prescindir dele. […]

A psicologia não nos diz como se formam e se desenvolvem as ideias morais, pois nada sabe sobre elas. Se é verdade que a moral tem por base um fato psicológico, ela termina num fato social. Suas raízes se afundam no coração do indivíduo, mas para descobrir essas raízes é preciso primeiro observar os ramos mais altos, seguir todas as suas curvas para ver onde e como eles se separam do galho, e segui-lo até encontrar o tronco de onde emerge toda a massa. Proceder de outra forma, contentar-se apenas com a observação psicológica, seria fechar os olhos voluntariamente ao que torna distinta a moral;  seria reduzi-la intencionalmente a um acontecimento da consciência individual; e isso seria adotar de início o individualismo.

Se existe uma forma de entender os fenômenos coletivos, é estudá-los em si mesmos. Em outras palavras, somente a psicologia social (die Volkerpsychologie) é capaz de oferecer ao moralista a matéria que necessita de acordo com Wundt, ela é o saguão de entrada (die Vorhalle der Ethik) da ética. E na história da linguagem, da religião, dos costumes, da civilização em geral que descobrimos os traços desse desenvolvimento, que a consciência individual contém e do qual conhece apenas os impulsos iniciais.

Quatro fatores dão origem à moral: (1) religião, (2) costumes, (3) o meio físico e (4) a civilização em geral. Mas os dois primeiros são de longe os mais importantes.

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*Wilhelm Wundt, Ethik: Eine Untersuchung der Thatsachen und Gesetze des Sitdichen Lebens, VI, 77 p., Stuttgart, 1866

A Ética*

As pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade.

DURKHEIM, É., 1858-1917. Ética e sociologia moral. Tradução P. Castanheira. São Paulo: Martin Claret, 2016.  95p.

Do fato de os costumes sociais terem sua origem em práticas religiosas não resulta que, em última análise, os sentimentos morais derivem apenas de sentimentos religiosos. Junto com esses últimos havia, desde o início, tendências sociais cujas origens estavam na natureza humana. De fato, todas as pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade. O que os unia não era, como se  afirma com frequência, relações de sangue, mas semelhanças de língua, hábitos e costumes. As primeiras sociedades não foram famílias, e sim agregados muito menos determinados, nos quais ainda não havia se formado nenhum laço definido de parentesco. As famílias só passaram a existir mais tarde; foram o resultado de uma diferenciação que acabou por acontecer dentro da tribo.

A afinidade entre iguais (die Neigung zu dem  Genossen) é assim a forma mais antiga de inclinação social. Por rudimentar que seja, esse sentimento não é produto do egoísmo. E, em princípio, um fator autônomo de progresso moral. Mas era tão fraco, tão indefinido, que teria sido rapidamente superado pelas tendências ao egoísmo se tivesse que lutar sozinho contra elas. Encontrou, contudo, um aliado poderoso nos sentimentos religiosos. A religião, como já vimos, era uma escola natural de desprendimento e abnegação. O respeito às ordens divinas e a simpatia pelos semelhantes são as duas fontes de onde emergem todos os nossos impulsos altruístas e com eles toda a moral.

Entretanto, o egoísmo também teve um papel nessa evolução: percebem-se traços dele em todas as morais primitivas. O altruísmo era tão fraco que dificilmente teria prevalecido mesmo com o auxílio da religião, se o egoísmo não tivesse colaborado. Encontram-se em Homero muitos relatos de atos desprendidos; mas os motivos eram sempre marcados por um egoísmo ingênuo. Se um guerreiro arrisca a vida para salvar um companheiro é porque tal devoção é gloriosa ou geralmente útil, pois significa a obtenção de um apoio que pode vir a ser necessário.

Como, então, estímulos egoístas, tão poderosos no início, desaparecem da conduta moral e dão lugar a motivos verdadeiramente desinteressados? Seria porque se tornam mais esclarecidos? Passaram as pessoas, depois de algum tempo, a perceber o egoísmo como um inimigo? Isso seria atribuir um enorme poder de previsão à inteligência humana em geral, e em especial à inteligência rústica dos povos primitivos. Na realidade, a evolução foi inteiramente mecânica; nem planejamento, nem previsão tiveram participação. Os estímulos egoístas foram eliminados porque eram contraditórios. Em outras palavras, a evolução foi o produto de um tipo de estabilização e de regularização espontânea de tendências desse tipo (Compensation und Selbstregulation egoisdscher Triebe). Vamos imaginar que em alguns casos a simples simpatia não tenha a força necessária para superar as inclinações egoístas e só encontre apoio em motivos desinteressados. Quando isso acontece, a satisfação egoísta sentida por se ter triunfado sobre si próprio se transforma num motivo sui generis que reforça a tendência à simpatia e assegura sua vitória sem necessidade de maiores apelos a considerações desinteressadas. Fatores egoístas são dessa forma neutralizados e se cancelam mutuamente, ao passo que a tendência genuinamente altruísta emerge da massa que a confinava. Tal altruísmo, entretanto, não é apenas um egoísmo disfarçado ou transformado; e seria um erro confundir sua origem com a que o utilitarismo lhe atribuiu. O altruísmo não vem do egoísmo, pois nada deriva de seu oposto. Desde o início ele existe na obscuridade e geralmente neutralizado por interesses pessoais. Tais interesses não geram os seus contrários quando desaparecem; cessam apenas de obstruir sua manifestação. Ademais, interesses pessoais certamente não se extinguem, nem hão de desaparecer completamente. Há espaço no coração humano para mais de um sentimento.

Como a simpatia original se prende unicamente a indivíduos, é natural que ela varie com eles. E a história demonstra que essa tendência primitiva se torna cada vez mais diferenciada à medida que se diferenciam os contextos onde ela aparece. De início, um mesmo sentimento une todos os membros de uma tribo (Stammgefühl), e há consequentemente uma moral comum a todos – uma moral tão simples e inconsistente quanto a sociedade que representa. Mas quando a família começa a emergir do corpo dessa massa homogênea, sentimentos e uma moral domésticos se desenvolvem simultaneamente. Nascem depois os Estados, classes e castas se organizam, multiplicam-se as desigualdades, e se diversificam os sentimentos e moral coletivos conforme as condições sociais. Existe uma moral para cada classe social – escravos, homens livres, sacerdotes, guerreiros, etc. De outro lado, como a moral tem origens religiosas, ela passa a ser nacional, tal como a religião. Cada nação tem a sua própria moral, que se relaciona apenas consigo mesma: as pessoas têm deveres e obrigações apenas com seus concidadãos.

Mas essa dispersão das ideias morais não é a última palavra do progresso. Já há muito tempo um movimento de concentração vem se desenvolvendo, que ainda hoje se desenrola diante de nossos olhos. A medida que as sociedades se tornam maiores, os laços que prendem as pessoas entre si deixam de ser pessoais. A verdadeira simpatia é substituída por outra mais abstrata, mas não menos poderosa, uma ligação com a comunidade de que se participa, ou seja, com os bens materiais e ideias que as pessoas têm em comum – arte, literatura, ciências, costumes, etc. A partir desse ponto, membros da mesma sociedade são amigos e se ajudam mutuamente, não apenas por se conhecerem, ou conforme o grau de conhecimento que tenham entre si, mas porque participam todos da consciência coletiva. Esse sentimento é muito impessoal para permitir que a moral tenha a variedade que tinha antes; é muito geral para que a moral continue sendo particular. Na medida em que ideias e sentimentos comuns surgem do âmago da sociedade, desaparecem as diferenças. Mesclados no corpo da consciência social que os envolve, indivíduos e classe, em virtude de suas próprias relações, veem diminuir gradualmente os abismos que antes os separavam. Essa fusão de indivíduos e classes não faz desaparecer as desigualdades externas, o que não é possível nem desejável, pois a desigualdade é um estimulante que, se não é moral em si, é necessário para a moral. Não é menos verdade, contudo, que todos os cidadãos da mesma nação tendem cada vez mais a se verem como iguais por se verem como servidores do mesmo ideal – do que resulta a crescente uniformidade de vestimenta, estilo, maneiras, etc., e a tendência cada vez mais pronunciada ao nivelamento das desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, esse ideal comunitário, por ser impessoal, independe cada vez mais do tempo e espaço. Eleva-se assim gradualmente acima de sociedades particulares e se torna o ideal único da humanidade. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a moral de classe e casta desaparece, também desaparece finalmente a moral nacional para que surja a moral da humanidade.

Quanto à civilização, ela tem uma influência complexa sobre essa tendência. Aprimoramento dos meios de transporte e de comunicação certamente Continuar lendo “As pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade.”

As pessoas têm o que se poderia chamar de uma afinidade natural por seus iguais, que se manifestou desde que vários homens passaram a viver juntos, isto é, desde os primeiros dias da humanidade.